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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Pela 1ª vez, imagens mostram o que a covid-19 faz com o cérebro de crianças

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

04/05/2023 04h00

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Lentidão para terminar a lição de casa, compreender o que os professores tentavam ensinar e até mesmo para fazer anotações — era essa a observação da escola e dos pais de crianças que tiveram covid-19. Aliás, os próprios meninos se queixavam disso aos médicos do Hospital Infantil de México Federico Gómez, onde tinham ficado internados por manifestarem um quadro mais grave da doença.

O hospital na Cidade do México, ligado ao Instituto Nacional de Salud do país, havia encerrado qualquer outro tipo de atendimento no auge da pandemia. Para lá, eram encaminhados apenas os pacientes pediátricos que contraíram o vírus Sars-CoV-2 e que, dando um choque de realidade em alguns adultos, tinham muita dificuldade para respirar e outros sintomas severos.

O México, de acordo com os dados oficiais do seu governo, teve mais de 120 mil crianças com covid-19 até o momento. A radiologista pediátrica Pilar Dies Suarez, chefe do departamento de exames de imagem do hospital, acredita que o número seja até maior. E ela não foi indiferente às queixas de problemas de memória da meninada. Resolveu investigá-las.

Assim, a doutora Pilar e seu time realizaram o primeiro estudo do mundo mostrando as alterações no funcionamento cerebral de meninos e meninas que tiveram quadros graves da infecção pelo Sars-Cov-2. "Antes, só havia estudos sobre as sequelas da infecção na memória baseados nas imagens cerebrais de adultos vivos na mesma condição ou na autópsia daqueles que, lamentavelmente, morreram", conta.

O trabalho está para ser publicado no Journal of Applied Clinical Medical Physics. Mas no último domingo, 30 de abril, quem esteve presente na 25ª edição do Congresso da Sociedade Latino-Americana de Radiologia Pediátrica, que aconteceu paralelamente à Jornada Paulista de Radiologia, em São Paulo, pode conhecer os resultados.

Diferenças que saltam aos olhos

Se a gente contar o que a doutora Pilar viu exatamente — em resumo, alterações no giro pré-central, no giro pós-central e em áreas específicas ligadas à motricidade —, será difícil compreender sem noções de anatomia cerebral. Mas nem é preciso chegar a tanto.

Pelas imagens abaixo, obtidas em sua pesquisa, qualquer leigo consegue enxergar a diferença gritante entre o cérebro de uma criança que não teve covid-19 (a foto à esquerda) e a de outra que teve um quadro severo dessa infecção.

Covid memória crianças - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

O que as imagens revelam

Os pesquisadores mexicanos estudaram o cérebro de 51 meninos e meninas entre 10 e 12 anos — desses, 20 tinham sido infectados pela variante delta do Sars-CoV-2 e outros 31 nunca tiveram covid-19.

"Um detalhe importante: todas eram crianças absolutamente saudáveis, sem qualquer comorbidade, nem dificuldade de memorização antes de serem infectadas por esse coronavíus", faz questão de destacar a radiologista.

Os participantes — tanto os que tiveram covid-19, quanto os que não tiveram esse azar — fizeram o que os médicos chamam de ressonância magnética em repouso. Falam "em repouso" porque os pesquisadores não pediram à meninada para realizar alguma tarefa durante o procedimento.

"Esse exame não é invasivo e gera imagens em que conseguimos notar quais áreas e estruturas cerebrais estão mais ativadas", explica a doutora. No caso da garotada que havia ficado hospitalizada por causa da covid-19, essa ressonância foi realizada sete meses após a alta.

Nesse grupo que ficou doente, as alterações no giro pré-central e no pós-central indicam um pensamento mais lento, dificuldade para seguir instruções e baixa concentração, segundo a radiologista.

Esse é um padrão, diga-se de passagem, bem parecido com o exibido em outros estudos, estes focando adultos que, depois da covid-19, persistiram com aquela sensação esquisita de brain fog — termo inglês usado para descrever uma mente em que as memórias parecem escondidas sob uma névoa, vivendo com as ideias ligeiramente embaçadas.

"Nas crianças, encontramos ainda alterações em áreas motoras primárias, mais especificamente aquelas envolvidas com a coordenação fina", nota a doutora Pilar.

Coordenação fina é a que usamos para movimentar músculos relativamente pequenos, como aqueles das mãos, sempre requisitados na hora de a gente segurar o lápis ou a caneta para escrever. Isso, somado aos problemas de memória — problemas visíveis, ao pé da letra —, deve estar atrapalhando ainda mais a criançada.

Duas boas perguntas no ar

Uma delas é: será que o vírus da covid-19 faz isso tudo em qualquer criança que tenha um quadro mais grave? Pelas imagens do estudo, todas as que foram infectadas por ele apresentaram alterações. Então, é possível que sim.

Por outro lado, as participantes do grupo que teve a doença estavam ali justamente porque reclamavam da memória. "Portanto, não sabemos se elas já teriam tendência a desenvolver alguma disfunção neurológica e se, no caso, o Sars-Cov-2 não teria apenas acelerado o seu aparecimento", diz Pilar Dies Suarez.

Observo — e minha entrevistada concorda — que infelizmente muitas das crianças do estudo que tiveram covid-19 também foram intubadas, permanecendo sob o efeito de drogas pesadas usadas na sedação. "Sim, de fato isso também afeta o sistema nervoso. Tudo deve ser uma somatória", afirma a doutora.

A outra pergunta que os pesquisadores agora se fazem vale ouro: seriam esses efeitos reversíveis? Para respondê-la, a investigação dos mexicanos continua. "Vamos acompanhar esses meninos e meninas ao longo do tempo", declara a radiologista.

Aliás, a garotada já passou por uma nova ressonância magnética, esta realizada após um ano e meio da alta. Os dados estão sendo analisados, mas a doutora Pilar adianta que os danos afetando o funcionamento do cérebro desapareceram em algumas crianças.

"Em outras, sinto dizer que ainda não", anuncia. "Daí que volto a cogitar que algumas delas teriam predisposição a problemas de memória, os quais talvez só viessem à tona muito adiante se não fossem catalisados pelo vírus." É uma hipótese.

Seja como for, mesmo que passageiras, as alterações encontradas no estudo mostram que o cérebro da criança que teve uma covid-19 mais séria não consegue aprender plenamente em um período de tempo único — o da escola. E ele não volta. Alguns de seus aprendizados ficarão irremediavelmente perdidos.

E não posso fechar este texto sem rememorar um lição para gente grande, pais e responsáveis: a vacinação infantil contra a covid-19 evita os quadros graves dessa infecção. Nota alta para quem sabe dela de cor e já a colocou em prática.