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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Covid-19: sem vacina, criança se reinfecta mais e isso ameaça o seu futuro

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

22/11/2022 04h00

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Enquanto, no Brasil, a vacinação das crianças contra a covid-19 mal e mal engatinha, com falta de abastecimento da CoronaVac para os pequenos entre 3 e 4 anos e autorização do governo para vacinar com Pfizer somente os bebês de 6 meses a 2 anos e 11 meses que tenham alguma comorbidade, um estudo recém-publicado na prestigiada Frontiers in Immunology merece destaque. Ele é brasileiro e pode ampliar o nosso olhar para a necessidade de vacinar a criançada.

Não que já não existissem bons motivos para os pais levarem seus filhos ao posto a fim de protegê-los do Sars-CoV-2. Mas os argumentos eram, até então, basicamente os dois de sempre — que continuam válidos, fique bem entendido.

Um deles seria evitar que meninos e meninas infectados, em grande parte das vezes assintomáticos, acabem levando uma enorme carga do coronavírus naquela visita à casa dos avós e de outras pessoas ou mais velhas ou com o organismo vulnerável por qualquer motivo de saúde. Não resta dúvida de que crianças espalham viroses tanto quanto brinquedos pelo chão.

Outro é prevenir casos graves. Diga-se que esse argumento é forte à beça. Fraca é a ideia de que a covid-19 não mata quem está curtindo a infância. No nosso país, de acordo com a Fiocruz, a cada dois dias uma criança com menos de 5 anos morre por causa dela.

Mas, agora, os pesquisadores brasileiros chegam com um terceiro motivo para dar a vacina, que é cortar a oportunidade de as reinfecções na meninada fazerem maiores estragos, comprometendo o seu amanhã.

Escarafunchando a intimidade do sistema imunológico, os autores desse estudo multicêntrico, envolvendo diversas instituições de respeito, entenderam ainda mais por que as crianças dificilmente adoecem pra valer quando são infectadas pelo Sars-CoV-2. De fato, a maioria apresenta sintomas leves, quando muito.

No entanto, nelas, os mecanismos de defesa que conseguem a proeza de barrar a manifestação da doença não fazem muita coisa além disso. Em outras palavras, não conferem imunidade ao organismo por muito tempo.

Ou seja, as crianças que testam positivo para a covid-19 logo ficam à mercê do Sars-CoV-2 outra vez.

Riscos futuros

"Ninguém sabe o que sucessivas infecções por esse vírus poderão causar lá adiante", alerta a imunologista Cristina Bonorino, professora da UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) e líder do trabalho.

Mesmo sem pensar muito em futuro, há evidências de que reinfecções podem resultar em quadros mais graves do que os anteriores. "Não dá para dizer, 'o que o meu filho teve parecia um resfriadinho comum e tudo bem', achando que, por isso, ele está imune", afirma a pesquisadora. "Sem contar que crianças também são capazes de apresentar covid longa, com sintomas principalmente neurológicos."

Passados uns anos, porém, a coisa toda pode se tornar bem mais complicada, para não dizer preocupante. "Ninguém consegue dizer se o Sars-CoV-2 não poderá causar danos que só aparecerão quando essa criança crescer", afirma a professora.

Não seria algo inédito, nem exclusivo do coronavírus. Ora, uma lesão provocada pelo HPV na adolescência, o papilomavírus humano, às vezes se transforma em um câncer de útero décadas depois.

"Assim como a infecção pelo vírus de Epstein-Barr, ao causar mononucleose na infância, está associada a um maior risco de esse indivíduo ter esclerose múltipla na vida adulta", comenta a imunologista, acrescentando mais um exemplo.

Daí que, para ela e seus colegas, deixar as crianças sem vacina e sendo reinfectadas pelo Sars-CoV-2 é arriscar a saúde de toda uma geração, que talvez pague um preço alto mais para frente.

Por que a criança raramente adoece?

Essa foi a primeira pergunta que o time de cientistas se fez — e que time! Entre os 26 autores do estudo estão pediatras do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, gente da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que ficou de olho nos anticorpos neutralizantes, especialistas em estatística da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e de sistemas computacionais do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, além de brasileiros que hoje estão em universidades americanas, como a da Califórnia e Harvard, só para eu citar alguns.

Para encontrar respostas, eles observaram como se comportavam as defesas de 33 crianças a partir do momento em que foram infectadas pelo Sars-CoV-2 em outubro de 2020, quando não havia vacinas nem sequer para os adultos. Todas tinham no máximo sintomas leves.

Na sequência, os cientistas foram ver o que acontecia com o sistema imunológico de gente mais velha que tinha sido infectada pelo vírus da covid-19 na mesma época. Detalhe: foram 33 adultos que só tinham sintomas leves e outros 33 que, infelizmente, desenvolveram quadros severos da doença.

"A primeira análise foi na fase aguda da infecção e, ali, notamos uma grande diferença", explica a professora Cristina Bonorino.

O organismo infantil recepcionava o Sars-CoV-2 com batalhões de linfócitos T, que são citotóxicos, isto é, capazes de destruir as células do corpo invadidas por vírus. De prontidão, esses linfócitos não davam muita margem para o causador da covid-19 avançar e provocar sintomas mais importantes.

Já nos adultos os linfócitos T demoraram muito mais para surgir, dando prazo generoso para o vírus da covid-19 se replicar. E não era só isso: o sistema imune dos adultos respondia muito mais à proteína "S", aquela porção usada para invadir as nossas células e que é mais típica do Sars-CoV-2.

"Os linfócitos T das crianças, por sua vez, respondiam bem mais à proteína 'N' do núcleo capsídeo", revela a professora, referindo-se a uma espécie de invólucro do material genético do vírus.

Eis a hipótese para explicar por que esses linfócitos não perdem tempo para dar as caras: essa proteína "N" é igual àquela encontrada em diversos coronavírus que dão muito resfriado em crianças. Elas, com certeza, já entraram em contato com esses outros vírus algumas vezes e seu sistema imune, portanto, consegue ser mais ágil diante do Sars-CoV-2.

Depois da fase aguda

Os pesquisadores examinaram amostras de sangue de todos os participantes mais duas vezes — três e seis meses depois do diagnóstico.

No fundo, havia a expectativa de que as crianças, por receberem o vírus da covid-19 a pauladas, desenvolveriam uma boa imunidade depois do primeiro contato com ele, blindando-se por um bom período contra reinfecções. Mas que nada!

Quando os pesquisadores olharam para os festejados anticorpos neutralizantes em janeiro e em abril de 2021, já não encontraram diferenças entre crianças e adultos com quadros leves da doença. A derrocada dessas moléculas capazes de reduzir as reinfecções era evidente nos dois grupos que, vale repetir, até então não tinham sido vacinados.

Apenas os adultos que tiveram quadros graves, com necessidade de hospitalização e tudo mais, tinham adquirido alguma imunidade. Bem, diria que ela lhes custou caro.

Mas vacina evitaria reinfecção?!

As vacinas — em crianças ou em adultos — evitam principalmente quadros graves de covid-19. Mas, de fato, não impedem ninguém de pegar uma nova subvariante de ômicron, por exemplo. Ainda mais aqui, já que ainda não temos disponíveis aquelas que são bivalentes e contemplam versões mais recentes do coronavírus.

"Mas, não importando a idade, quando a pessoa não está vacinada o Sars-CoV-2 se mantém ativo e se replica em seu organismo por cerca de dez dias", informa Cristina Bonorino. "Com uma dose da vacina, porém, esse tempo cai para sete dias. E, com duas doses ou mais, para no máximo quatro dias."

Ora, o período mais curto não só reduz a chance de o coronavírus passar para mais gente, como limita o período em que pode causar baderna nos diversos órgãos. "Logo, em tese, isso diminui a probabilidade de complicações futuras", resume a professora.

Além de permanecer por pouco tempo antes de ser derrotado pelos anticorpos induzidos pela vacinação, o vírus se replica menos porque encontra um ambiente que definitivamente não facilita a sua sobrevivência. "Isso também corta o risco de sequelas", assegura a imunologista.

Portanto, não hesite: só a vacinação dá essa garantia de futuro aos pequenos. E aos graúdos também.