Topo

Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Por que aceitei fazer teste de memória e muita gente deveria fazer o mesmo

iStock
Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

08/11/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"Hoje é sábado, 5 de novembro e devem ser umas 11 horas", foi a primeira coisa que disse quando me perguntaram se eu sabia a data, em que dia da semana estávamos e se tinha ideia do horário. Pareceu moleza.

Continuou fácil. Tive de nomear algumas coisas, acho. Sendo honesta, não me recordo tão bem desse começo. E — ah, sim! — precisei guardar uma sequência de três palavras: jarra, carro, tijolo. Quando chegou a vez de repeti-la em voz alta, lembrei, ufa! Jarra, carro, tijolo.

Mas as tarefas foram se complicando a cada instante, ao longo de pouco mais de uma hora. Passei a errar. Que inferno ter de falar algarismo por algarismo de um número sem fim que eu tinha acabado de ouvir, só que de trás para frente!

Detalhe: ele era apresentado em um tom monótono. Isso porque, em matéria de números, muito do que decoramos tem a ver com a entonação da voz e, nesse caso, a área cerebral que processa essa espécie de musicalidade estava proibida de me dar pistas.

De erro em erro, veio a preocupação: e se descobrissem um espaço vazio em minha cabeça onde as informações um dia se perderiam para sempre? Na hora agá, esse receio embaralhava tudo.

Mas será que eu não venho me esquecendo de nomes, como noto há algum tempo, justamente por causa do medo de andar esquecida? Ou, durante o teste, será que o cansaço de quem tinha voltado de viagem não estaria atrapalhando demais? E, também, já não sou nenhuma garota com a massa cinzenta tinindo.

"O problema é este: as pessoas costumam aceitar as queixas cognitivas, encontrando supostos culpados", nota o neurologista Diogo Haddad, que é coordenador do Centro de Cognição da Santa Casa de São Paulo.

Foi ele que me convidou para participar de um estudo que está conduzindo no CPQuali, um instituto de pesquisa clínica na capital paulista, com o qual eu não tenho nenhum vínculo, bom avisar. Aceitei como qualquer voluntário, assinando o termo de consentimento obrigatório.

O objetivo dessa pesquisa é comparar testes consagrados de memória e cognição com uma nova ferramenta de avaliação criada por pesquisadores de fora, que parece muito mais prática para ser aplicada em qualquer canto do país.

Por esse motivo, fiz de tudo, ou seja, partes de testes antigos e bem manjados nos consultórios de quem trata problemas de memória e o novíssimo teste, que está sendo colocado à prova.

Se, com ele, os meus resultados e os dos outros participantes forem parecidos com os obtidos nos testes tradicionais, será sinal de que essa ferramenta funciona na nossa população e que poderá entrar na rotina dos profissionais de saúde brasileiros.

Segundo Haddad, eu preenchia dois requisitos para estar ali. Tenho mais do que 55 anos, idade a partir da qual a memória pode dar os primeiros tropeços. Além disso, não tinha queixas e poderia formar o que os cientistas chamam de grupo controle, aquele que será comparado com o de pessoas que já apresentam dificuldades de memorização ou demências propriamente ditas.

Mas a verdade é que ando avoada para nomes de pessoas, de lugares, de filmes. Minha cabeça fica revirando os neurônios até encontrá-los. Talvez eu já devesse ter procurado ajuda.

Voltando... "As pessoas normalizam as queixas cognitivas", Diogo Haddad ia me dizendo. "Elas dizem: 'é porque estou estressada', é 'porque ando trabalhando demais' e por aí afora". Meu caso!

Às vezes, quem está ao redor é que passa o pano no problema. Quando, por exemplo, atribui lapsos ao envelhecimento de um familiar. E envelhecer, aviso, não significa se esquecer.

"Há também casos em que você se sente bem, mas ouve dos outros que não está mais tão organizado quanto era no passado ou que está menos produtivo ou, ainda, que deixou de ficar tão presente nas situações", diz Haddad. Pelo sim, pelo não, leve em consideração.

Segundo o neurologista, tudo isso pode acontecer por conta de uma depressão, de uma sobrecarga de trabalho, de um milhão de coisas. "Mas por que não passar no médico?", questiona.

De fato, se eu estivesse com taquicardia, não arriscaria o palpite de ser só cansaço. Correria ao cardiologista. E, se meu estômago doesse, não me daria por satisfeita apostando no estresse e sem ir ao gastro.

"Toda pessoa, independentemente da idade — até o garoto às vésperas do vestibular — deveria procurar um neurologista ou um neuropsicólogo o quanto antes ao perceber algo diferente na maneira de sua cabeça operar", opina.

Esqueceu? Nem sempre é problema de memória

Quando alguém pede ajuda, em geral é porque experimenta aquela sensação de branco. "Mas, entre os pacientes que recebo com esse tipo de queixa, uns 80%, 90% não têm problema de memória", calcula Diogo Haddad.

O que eles teriam, então? "Muitas vezes, uma menor capacidade para planejar ou para prestar atenção, o que tem a ver com outras áreas cerebrais envolvidas em um processo que, na reta final, parece esquecimento", esclarece. "Mas, na realidade, o que há é uma dificuldade para reter o que aconteceu."

A memória, por sua vez, seria o talento do cérebro para buscar as informações que, um dia, ficaram bem gravadas.

Feito para a gente se esquecer

Os testes de avaliação são criados para colocar pedras no caminho dessa busca. "Eles têm etapas que estão ali para provocar esquecimentos", explica o doutor. Daí que, em vários momentos, fiz força para me lembrar.

Olhei para imagens e tinha de reconhecê-las — um violão, um relógio, um banco... Na sequência, porém, Haddad pediu que eu contasse de trás para frente, partindo de 100, mas sempre subtraindo 3. E lá fui eu: 97, 94, 91,,,

Logo veio a pegadinha: "Agora, lembre-se dos nomes daquilo que você viu antes". As contas tinham me distraído. Aprendi que, ao fazê-las, usei um outro lado do cérebro e larguei a área que ainda estava processando os nomes das figuras. Ao voltar para ela, não adiantava fuçar: a palavra "vela" só veio à lembrança após eu escutar que estava faltando um objeto capaz de iluminar.

Pior foi quando o neurologista me mostrou cinquenta figuras no lugar das dezesseis que eu tinha começado a memorizar. Metida a esperta, fui mentalmente agrupando algumas delas: tamanduá, polvo, caracol, elefante... Na minha cabeça, se juntasse os bichos, eu me recordaria mais fácil deles adiante.

Meus neurônios, porém, se perderam cuidando disso. E — outra pegadinha — nem tive de repetir essas cinquenta novas palavras. Tive, isso sim, de voltar àquelas dezesseis do início. E quem disse que eu me lembrava do raio da vela outra vez?!

Os testes — o novo e os antigos — garantem que tenho uma memória acima da média para uma pessoa da minha idade, com a mesma escolaridade. Mas não ando gravando o que acabo de ver ou ouvir por ansiedade. "O seu cérebro pula etapas e isso atrapalha a retenção da informação". Foi o que ocorreu ao agrupar bichos, antecipando a ideia de fazer bonito no teste depois.

Uma saída para cada cabeça

"Testes de avaliação distinguem quem pula etapas, como você, e quem apresenta sinais sugestivos de demência, algo que deverá ser investigado com mais exames ", explica Haddad.

Eu, por exemplo, vendo a imagem de uma treliça, precisei da pista de que o nome começava com "T" — e tudo bem. Mas, mesmo recebendo uma dica dessas, outra pessoa talvez não ache a palavra e, se isso se repete, o teste pode indicar que o problema está na região cerebral que processa a linguagem. A memória até abriria corretamente essa gaveta, mas não encontraria muita coisa ali.

É por isso — grave bem! — que escolas e outras iniciativas que prometem exercitar a memorização nem sempre ajudam. É fundamental saber qual região do cérebro estaria afetada para acertar na atividade de reabilitação capaz de melhorar o processamento dos neurônios.

"Quem mostra nos testes que está com problemas de aprendizagem — aliás, é por isso que algumas tarefas se repetem, para ver se o seu desempenho vai melhorando com o tempo —, precisa aprender coisas que nunca fez antes para melhorar", ilustra o médico. "Não adianta praticar um velho hobby. Nem seguir fazendo palavras cruzadas. Estas, aliás, são como um casaco em dia frio, que pode até aquecer, mas que não aumenta a imunidade de ninguém."

Quem sabe para alguns a solução não seja malhar os neurônios e, em vez disso, deixá-los descansar. "Um indivíduo que não dorme bem vai ter sua atenção prejudicada e consequentemente não reterá informação", conta, ainda, Haddad. "Se consigo ajustar o sono dele, tudo melhora."

Sair testando todos?

Da mesma forma como, a partir de certa idade, todas as mulheres fazem mamografia, será que não valeria a pena todo mundo testar a memória em consultório depois dos 55 anos para captar os primeiros sinais de uma encrenca?

"Ainda não há testes aprovados para a detecção precoce em quem está bem, sem queixas", explica Haddad. "Mas não vai demorar para termos o equivalente à 'mamografia da memória'", brinca o neurologista. E, se existe algo incomodando, aí é melhor testar. Até para aplacar temores e ver que você tem mais é que se acalmar — ao pé da letra, no meu caso.

O estudo, diga-se, segue em nova etapa, com voluntários acima de 55 anos, em São Paulo, mas agora com diagnóstico recente de Alzheimer ou com queixas cognitivas sérias ou, ainda, com parentes de primeiro grau que sofram de demências. Os interessados devem ligar ou mandar mensagem para (11) 94520-9454.