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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Colesterol alto: por que pode fazer diferença olhar para os genes

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

18/08/2022 04h00

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No que depende dos cardiologistas, mereceria até passeata: "abaixo o colesterol!", veríamos escrito em cartazes. E eles têm levado a sério esse protesto. Tanto que toleram cada vez menos o tal do LDL, que, na boca do povo, seria o amaldiçoado colesterol ruim.

Antes, era ótimo ter esse LDL abaixo de 100 miligramas por decilitro de sangue. Mas hoje, segundo as diretrizes mais recentes, isso seria inadmissível para quem tem um risco cardíaco considerado muito alto por já possuir grandes placas nas artérias, à beira de fecharem a passagem da circulação. Quando é assim, senhores, o LDL precisa ficar no chão dos 50 mg/dl.

E quem tem risco não muito alto, mas alto —como os portadores de diabetes — não deveria superar os 70 mg/dl.

No entanto, existem pessoas que, na dosagem no sangue, sempre vêem valores bem acima disso. E, sim, o número elevado pode entregar uma dieta cheia de churrasco e frituras, falta de ânimo para se exercitar, noites mal dormidas e uma série de maus comportamentos.

Não que os genes não tenham nada a ver com isso. De uma maneira ou de outra, eles estão sempre por trás. Mas, aí, um nível estratosférico do mau colesterol envolve centenas de variantes genéticas . Elas agem em conjunto e, mais do que isso, precisam ser atiçadas por fatores ambientais, ou seja, pela forma como levamos a rotina.

"Porém, quando você tem um colesterol LDL acima de 190 miligramas por decilitro de sangue — atenção! —, a história pode ser outra e vale investigar", alerta o médico Marcelo Bittencourt, que está à frente da área de Cardiologia da Dasa Genômica e que também atua no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

"Níveis acima dos 190 mg/dl levantam a suspeita de você ter herdado de família um gene que, sozinho, já é capaz de manter seu colesterol lá no alto", justifica o doutor.

Não tem bom comportamento que faça alguém com essa doença monogênica, a hipercolesterolemia familiar, escapar do perigo de acumular placas consideráveis nos vasos ainda na juventude.

Números mostram: não é um problema tão raro

Sem tratamento, 85% dos homens e 50% das mulheres com uma mutação genética assim infartam antes dos 65 anos da idade. Aliás, para muitos o infarto acontece antes dos 50.

A tal hipercolesterolemia familiar, a que os médicos se referem às vezes pela sigla HF, é minimizada porque causa uma certa confusão matemática.

"Se você olha, de fato esses casos representam menos de 1% de todas as pessoas que têm colesterol alto", diz o doutor Bittencourt. Daí, ao fantasiar algo muito raro, pode surgir aquele pensamento de que o problema não é com a gente.

"No entanto, a pequeneza do número ganharia outra proporção se você lembrasse da quantidade de pessoas no planeta com colesterol alto", completa o doutor Bittencourt.

Vira mesmo um contigente de respeito. No final das contas, uma em cada 200 a 313 criaturas no mundo tem HF. E, todo ano, essa herança familiar provoca 200 mil mortes ao redor do globo. Todas precoces.

Genética e coração

A cardiogenética, me conta Marcelo Bittencourt, seria uma subespecialidade dentro de cardiologia. Ela estuda, óbvio, as doenças hereditárias do coração.

Podemos herdar determinadas arritmias, síndromes aórticas e as tais dislipidemias —- quando as taxas de uma gordura em circulação se elevam perigosamente. Note, são doenças bem diferentes. Em comum têm apenas o seguinte: são as principais causas de morte súbita em jovens.

"Entre as dislipidemais hereditárias, a que mais preocupa é a que envolve o colesterol", afirma o médico. "Isso porque com frequência é muito grave."

A HF tem o padrão que os geneticistas chamam de autossômico codominante."Em outras palavras, quando existe a mutação, ela está presente em todas as gerações de uma família", define.

Se tiver o gene alterado e me casar com alguém de uma família sem esse problema, meu filho terá 50% de probabilidade de herdá-lo. E, se isso acontecer, sabe-se que esse gene tem alta penetrância. Quer dizer, há uma altíssima probabilidade — acima de 90% — de ele manifestar a doença. Ou seja, é muito pouco provável que fique de boa.

Pistas que acendem o alerta

Reparar no resultado dos níveis de colesterol total e, principalmente, do LDL é importante. A desconfiança cresce se você conhece casos de doença cardiovascular em parentes de primeiro grau quando eles não tinham nem sequer 50, 60 anos. Atenção: mesmo que o problema, por sorte, não tenha sido fatal.

Quatro em cada dez pacientes de HF exibem, inclusive, depósitos desse colesterol na pele, na forma de bolinhas ou de manchas esbranquiçadas, geralmente ao redor dos olhos. Elas podem aparecer até mesmo em crianças. Os médicos as chamam de xantelasmas.

Raramente, em casos muito severos a gordura forma protuberâncias pra valer, quase do tamanho de azeitonas, em regiões como a dos cotovelos.

Maioria dos casos não é flagrada

Mesmo assim, a doença genética é subdiagnosticada na população geral. "E isso no mundo inteiro", comenta, em tom de lamento, Bittencourt.

Uma revisão de dados de diversos países aponta que só a Holanda flagra mais de metade dos casos de hipercolesterolemia familiar. Na verdade, 71% dos holandeses com a doença são diagnosticados.

O resto não passa nem perto disso. "Nem mesmo os países escandinavos, que têm uma tradição de prevenção primária", observa o cardiologista. Na Noruega, 43% dos casos são acusados. Já na Islândia, 19%; na Dinamarca, 4%.

O Brasil empata com Chile, México, Japão e Estados Unidos: menos de 1% de todas as pessoas com HF sabem dessa condição. Convivem com o colesterol alto sem desarmar a bomba-relógio em seu peito.

É uma pena. "Se começam a tomar remédios cedo, reduzem em 80% o risco de eventos cardiovasculares em um período de dez anos", informa o doutor Bittencourt. Em contrapartida, sem tratamento, só quatro indivíduos em cada dez com essa doença genética ficam livres de problemas do coração nesse mesmo período.

É pior quando é uma herança

Se o LDL foi catapultado pelo estilo de vida ou se é o destino de quem carrega uma mutação genética, no final das contas — é o que podemos pensar —, ele se deposita nos vasos e forma placas do mesmo jeito. Só que não é bem assim.

Marcelo Bittencourt mostra um estudo apontando o seguinte: o risco de alguém infartar por causa de uma placa entupindo o vaso sanguíneo é dez vezes maior em que tem hipercolesterolemia familiar do que em quem tem o hipercolesterolemia adquirida pelo estilo de vida. Já a ameaça de ter uma encrenca dessas antes dos 50 anos é vinte vezes maior. A do colesterol subir para níveis extremamente severos é 23 vezes maior.

Para fazer o diagnóstico

"Você não precisa de um painel genético para saber que tem a hipercolesterolemia familiar", informa Marcelo Bittencourt, apesar de ver vantagens em investigar os genes.

"O cardiologista fazer um escore, marcando pontos conforme o histórico familiar, o nível de LDL, a de placas e outros fatores", conta. "Mas só há certeza quando você soma mais de 8 pontos após considerar os diversos parâmetros."

O problema, na visão do médico, é que devem existir pessoas com HF e pontuação menor. "Ou não teríamos tanta gente saindo dos consultórios sem esse diagnóstico", pondera.

O painel genético não as deixariam escapar. A questão é que ele ainda é inacessível para muita gente, apesar de existir uma tendência de isso mudar aos poucos agora que é feito no país.

"O interessante é que o painel genético também consegue dar um prognóstico", ressalta o cardiologista. "Eu posso ter um paciente jovem que ainda está com um LDL de uns 160 mg/dl, por exemplo. Sabemos que, se eu o comparar com alguém da mesma idade e com a mesma faixa desse colesterol, só pelo fato de ele ter a mutação, seu risco é maior. Porque existem partículas de LDL com densidades diferentes e umas são piores do que outras."

Portanto, não é só uma questão da quantidade. Quem herda uma mutação dessas apresenta uma pior qualidade de colesterol também.

Já houve muita controvérsia sobre o uso de medicamentos para baixar o colesterol em crianças. Mas cada vez mais mais estudos que acompanharam por anos pacientes diagnosticados na infância ou na adolescência encontram vantagens em não se perder tempo. O ideal, quando há HF em casa, é que o exame genético seja feito aos 8 anos de idade.

Não há, segundo o médico, a necessidade de um painel — isto é, de sequenciar todos os genes — quando já se sabe qual alteração específica daquele família estaria por trás da doença. "Vamos direto atrás dela, o que significa um teste mais simples ", explica.

Em cerca de 80% dos casos, a mutação é no gene que codifica o receptor celular que pegaria o colesterol no sangue. Há, ainda, genes com mutações genéticas capazes de a proteína que carrega o colesterol e isso também dificulta sua captação pelas células. Finalmente, a mutação no gene pode afetar uma molécula chamada PCSK9, atrapalhando eliminação do colesterol do organismo. No final, tudo é encrenca de família.