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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Biópsia líquida: quando um simples exame de sangue pode entregar um câncer

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

16/06/2022 04h00

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Imagine se, por meio da mesma picadinha de agulha em seu braço ao fazer aquele exame de sangue de rotina, você pudesse descobrir se tem algum câncer. O frio na barriga aumentaria na hora de pegar o resultado, mas, pensando na chance de ouro de receber um tratamento precoce e derrotar a doença, seria bom demais.

Há quem diga que, mais dia, menos dia, isso fará parte do nosso check-up. E a ideia não é nada absurda. Hoje mesmo, nos Estados Unidos, já existem três laboratórios oferecendo essa possibilidade e prometendo flagrar pelo menos os 20 tipos de tumores malignos mais incidentes por lá.

Mas, cá entre nós, ainda resta um bom caminho até a gente poder confiar plenamente que a chamada biópsia líquida não deixaria escapar um caso ou outro, isto é, quando o câncer é muito inicial.

Por enquanto, ao realizá-la, cerca de metade das pessoas com um câncer que ainda engatinha pode receber um resultado negativo simplesmente porque não foi achada nenhuma célula maligna ou, melhor dizendo, nenhum material genético dela no plasma, que é a parte líquida do sangue. E, claro, isso não quer dizer que a doença não exista.

"Esse exame é muito mais eficiente quando já há metástase", reconhece a biomédica baiana Gabriela Félix, gerente do laboratório de oncologia da Igenomix Brasil, multinacional que sempre foi referência em genética da reprodução e que, de uns tempos para cá, investe também na área do câncer.

Faz sentido a biópsia líquida funcionar melhor em estágios mais avançados dessa doença: "O tumor sempre desprende pedacinhos", explica, de um jeito simples, Gabriela. "E isso acontece com maior intensidade quando ele está muito ativo." Leia, quando está se disseminando.

Sem contar que, se o câncer já se espalhou, há mais focos dele pelo corpo e, daí, a tendência é de você encontrar uma quantidade um pouco maior dessas pistas moleculares abandonadas no plasma sanguíneo, o que facilita.

"Até porque essas células doentes ou os pedaços de DNA delas não permanecem ali, na circulação, para sempre", diz Gabriela. "Eles são quebrados pelo fígado e excretados pelos rins." Isso atrapalha ainda mais, quando a quantidade já não é lá grande coisa.

Mas, tirando essa complicação com a quantidade, como todo câncer é banhado por sangue, o plasma costuma arrastar consigo todos os seus segredos. "A exceção são alguns tumores em que a gente não consegue pescar sinais o suficiente na amostra sanguínea, ninguém sabe direito o motivo. E aí é preciso buscar outros fluidos como alternativa."

É o que acontece, por exemplo, com os tumores no cérebro: costuma ser mais produtivo colher amostras do líquido espinhal. Já para entender o que está acontecendo com um tumor de bexiga, a urina pode ser bem mais útil.

Se o papel da biópsia líquida no diagnóstico continua rendendo um belo debate, a realidade é que ela tem uma série de outras aplicações no monitoramento e no tratamento de um câncer — e, aí, é capaz de fazer total diferença. Isso, sim, nem se discute.

Para escolher o melhor tratamento

Que fique claro: a biópsia convencional, isto é, aquele procedimento no qual é retirado um pedaço do tecido suspeito, continua sendo o padrão-ouro para se estudar a genética de um câncer. Mas, às vezes, ela não é suficiente. E foi isso o que abriu espaço para a biópsia líquida, que antes era usada só em pesquisa, na prática clínica.

"No câncer de pulmão, o exame convencional é feito por meio de uma agulha fina que o médico introduz ali duas ou três vezes para aspirar um pouco do tecido", exemplifica o biólogo gaúcho Gabriel Macedo, que é diretor de oncologia de precisão da Igenomix Brasil. "O problema é que, a cada aspirada com a agulha, sai apenas uma tripinha ínfima de tecido e, no final, a amostra pode ser muito exígua. Daí que, entre 20% e 30% das vezes, não temos DNA do tumor o bastante para fazer o sequenciamento." E ele seria mais importante do que nunca no câncer de pulmão.

Nos últimos anos, os tratamentos oncológicos se tornaram cada vez mais personalizados, capazes de agir certeiro quando um câncer tem essa ou aquela variação genética específica. E provavelmente nenhum outro tumor ganhou tantas novas opções terapêuticas quanto o de pulmão. "Só que precisamos do teste genético para saber qual delas seria a melhor indicação", explica o biólogo, pegando dois blocos do tamanho de caixas de fósforo para eu ver.

É em blocos assim, feitos de parafina, que são conservados os tecidos retirados nas velhas biópsias. Em um deles, enxergo uma grande mancha escura. "Só de bater os olhos, sei que este não é um câncer de pulmão", diz Gabriel Macedo, que então me mostra o segundo bloquinho de parafina, onde mal dá para eu ver algo dentro. "Este aqui, sim, tem cara de uma amostra pulmonar e o primeiro gargalo é o seguinte: o patologista já vai usar uma boa quantidade do pouco tecido que está aqui, sobrando ainda menos para os testes genéticos."

Quando não resta quase nada, os oncologistas podem apelar para a biópsia líquida. A primeira aprovação do FDA para realizá-la, aliás, foi em 2015, justamente para contornar essa dificuldade nos testes genéticos do câncer de pulmão e responder qual das novas drogas funcionaria com maior eficácia nele.

Para explicar por que a doença voltou

Às vezes, depois de um ano de trégua, o câncer de pulmão dá as caras de novo. "Vamos precisar de mais um teste genético para entender o motivo", conta Gabriel Macedo. "Só que o paciente, com o organismo tomado pela doença, pode se encontrar debilitado demais para se submeter à biópsia convencional e, então, apelamos para o sangue."

Em seis de cada dez casos assim, há uma mutação conhecida por T790m, que faz esse câncer ficar resistente ao tratamento usado até então. "A biópsia líquida aponta se essa mutação está presente, o que é valioso porque já existe uma droga para a T790m e, ao empregá-la, você prolonga a vida do indivíduo."

Para diminuir a perda de tempo

Mesmo quando alguém retira um câncer muito no começo, pode ficar o que os médicos chamam de doença residual, a qual ninguém estava enxergando.

Em março deste ano, por exemplo, cientistas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, publicaram um trabalho com 88 pacientes que descobriram um tumor de pulmão assim, bem no início, e que foram operados com o firme propósito de colocar um ponto final nesse assunto.

Só que, pelo sim, pelo não, todos continuaram fazendo um acompanhamento com biópsia líquida. "Resultado: ela alertou quando o câncer tinha retornado com 200 dias de antecedência, em média", conta Gabriel Macedo. "A identificação precoce faz com que a gente aja antes, aumentando a chance de sucesso."

Esta, portanto, é mais uma indicação: após um tratamento curativo, o paciente poderia fazer uma biópsia líquida a cada seis meses.

No tumor que se espalhou pelos ossos

Há dois anos, foram aprovados medicamentos chamados de inibidores de PARP, capazes de beneficiar 28% dos homens com tumor de próstata metastático. "Mas aí é que está: 40% dos testes genéticos feitos com amostras de tecido vão falhar, sem mostrar quem são aqueles que teriam vantagem se usassem esses inibidores."

Isso porque, muitas vezes, o câncer que nasceu na próstata reaparece nos ossos. "E nada mais difícil do que extrair o DNA de uma amostra de ossos para fazer um teste genético", observa Gabriel Macedo. "Esse é mais um cenário em que a biópsia líquida ganharia força."

Será que o mesmo não aconteceria em outros tumores com metástase óssea? "Em princípio, sim", responde Macedo. "Posso fazer uma biópsia líquida de qualquer tumor. Só preciso ficar cauteloso com um resultado negativo, porque ele não necessariamente quer dizer que a pessoa não tenha a alteração que eu buscava. Talvez ela só não tenha sido encontrada com facilidade no sangue."

Para complementar a biópsia tradicional

Há quem diga que a biópsia líquida possa ser até melhor do que a tradicional no câncer de ovário. São necessários mais estudos até se propagar uma afirmação dessas. Mas o fato é que algumas mutações nos famosos genes BRCA 1 e BRCA 2 nem sempre são detectadas nas amostras do tecido ovariano.

"Uma mutação nunca aparece no tumor inteiro, como se suas células fossem meros clones", justifica o diretor da Igenomix. "Ela pode se concentrar em uma pequena porção dele e a biópsia, por azar, pegar um pedaço diferente."

Já o plasma sanguíneo arrasta um pouco de tudo o que há no tumor — não tem essa histórica de pedaço certo, pedaço errado. Por isso, sempre é capaz de complementar o primeiro exame.

Para ficar de olho em quem tem maior risco

Finalmente, por mais que cerca 49 % dos tumores iniciais escapem da biópsia líquida, em determinadas circunstâncias é melhor fazê-la do que nada.

Pode ser uma boa solicitá-la a cada seis meses para quem fuma, por exemplo. Ora, ninguém vai mandar esse sujeito repetir exames de imagem nesse intervalo. Mais fácil tirar um pouco de sangue.

"O mesmo talvez valha a pena para quem corre o risco de ter um câncer hereditário, que representa 10% de todos os tumores", diz Gabriel Macedo. No Sul e no Sudeste do país, por exemplo, uma em cada 300 pessoas tem a chamada síndrome de Li-Fraumenti, provocada por um defeito no gene TP53, que seria um supressor do câncer.

Sem ele em perfeito estado, a pessoa apresenta 50% de probabilidade de ter um tumor maligno qualquer antes dos 30 anos de idade. Até há pouco, o único jeito de rastrear esse perigo era fazendo uma ressonância de corpo inteiro. Mas aí é que está: quem tem a tal síndrome também é muito sensível à radiação que, no seu caso, pode favorecer mais ainda o aparecimento de câncer. Não à toa, mais uma vez, a alternativa aqui poderá ser um exame de sangue.