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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Maíra Cardi no paredão: desde quando uma dieta 'zera' os genes de doenças?

Reprodução/TV Globo
Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

03/03/2022 04h00

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Não sei se foi uma dieta de vip, não sei se foi um cardápio de xepa. Se tinha brócolis no lugar das fritas da festa e frutas picadas em vez daquele chocolate todo no quarto do líder. Pão provavelmente não tinha — e disso a gente já sabe!

Só vi que ex-BBB mamãe e atual BBB papai seguiram uma "alimentação específica" antes de ela engravidar porque fizeram uma "modulação epigenética". Meu São Bonifácio, onde está o botão para eu apertar? Quem gosta de ciência está que nem o Tiago Abravanel, querendo dizer "acabou para mim".

Mas não, não desisto. Sigo no jogo para você entender por que a mais equilibrada das dietas tem o seu valor, mas decididamente não zera, aliás, às vezes nem sequer diminui a probabilidade de alguém ficar doente. Muito menos a de o seu filho ter uma doença hereditária.

Maíra Cardi, que esteve na "casa mais vigiada do Brasil" em 2009, mulher de Arthur Aguiar, participante do BBB 22, é coach nutricional e, como ela própria se define nas redes sociais, "empresária do emagrecimento". Com essa autoridade, no programa Hora do Faro, da Record, ela relatou com entusiasmo o que o casal fez quando planejou aumentar a família.

Reproduzo a declaração ao pé da letra: "Eu fiz modulação epigenética antes de engravidar da Sophia. Como nem todo mundo sabe o que é, deixa eu fazer uma explicação breve. É quando você e seu marido mudam a alimentação antes da gravidez para zerar a genética de doenças. Câncer, diabetes, qualquer doença genética vem zerada. Aí o seu filho nasce sem nenhum gene ruim de doenças." Opa, simples assim!

O apresentador Rodrigo Faro fez então aquela cara de "uau!" e ela, sorridente, completou: "São seis meses com essa alimentação. É muito maravilhoso." Pois é...

A prova dos genes: regras básicas

Não sei o que alguém para ser coach nutricional ou empresária do emagrecimento precisa estudar de genética. Talvez o mesmo tanto que um jornalista estuda genes na faculdade. Ou seja, nada.

Por isso, jornalista que sou, fui atrás de quem realmente entende: a geneticista Michele Migliavacca. Gerente médica da GeneOne, o laboratório de genômica da Dasa, ela é doutora em Ciências pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), com passagem pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. E preferiu começar a conversa pelo básico, isto é, pela famosa dupla fita de DNA.

Vamos imaginar: uma poderia ter vindo do Arthur. A outra, herdada da Maíra. É nos cromossomos herdados da mãe e do pai nessas fitas enroladas enroladas que se enfileiram os cerca de 21 mil genes do ser humano, cada um deles formado por sequências com diferentes combinações de apenas quatro letrinhas —"A", "T", "C" e "G". "Elas descrevem tudo o que somos e o que podemos nos tornar, incluindo aí a probabilidade de termos certas doenças", conta Michele.

Desse modo, cada uma das células do organismo carrega a dupla fita com a receita dele completa, sem faltar detalhe. "Ocorre que às vezes, em um certo gene, a gente encontra um 'A' onde deveria haver um 'G' e só essa letra trocada já bastaria para surgir um problema", exemplifica a geneticista.

Quando uma mutação dessas acontece, a troca não está só nas células do órgão que seria o alvo daquela patologia. Ela aparece da cabeça aos pés, inclusive nas células dos testículos e nas dos ovários, onde se originam espermatozoides e óvulos, respectivamente. Aí, não tem dieta que resolva. A letrinha fora de lugar vai para o filho, sem a segunda chance do bate-e-volta.

"Claro, existem heranças que são recessivas e heranças que são dominantes e, sendo de um jeito ou de outro, o risco de o filho adoecer será diferente", explica a médica. Bem, digamos que herança dominante é feito o líder — se falou, está falado.

A tal da epigenética

Se o nosso material genético contém absolutamente todas as informações do organismo, pare para pensar: algumas delas podem não ser necessárias o tempo inteiro. Michele Migliavacca aponta um exemplo: "Se tenho um gene cuja função é formar os braços, só vou precisar dele na fase embrionária. Depois, ele poderá ser desligado."

Seguindo o mesmo raciocínio, um determinado gene pode não ser igualmente útil em todo canto. Ora, aquele que é importante para a célula do fígado funcionar pode ser imprestável em uma célula do globo ocular. Sendo assim, ele deveria estar ligado no fígado e desligado nos olhos.

"Epigenética é isso, esse ligar-e-desligar, como se existissem interruptores no nosso DNA", define a geneticista. E, no caso, o equivalente ao dedo que apertaria o botão costuma ser uma molécula chamada metil.

"Quando ela se liga a um gene, dizemos que ele está metilado. Quer dizer que está desativado ou silenciado", simplifica a geneticista. Logo, esse gene seria feito uma "planta do BBB": consta que está ali, mas não faz nada. Já se o gene não está metilado, ele se encontra funcionando ou ativo.

É daí que vem a confusão — e não só a de Maíra Cardi quando inventa um suposto tratamento da epigenética, mas a de quem compra teste genético para saber se deve comer isso e deixar de comer aquilo a fim evitar doenças. Digamos que o recurso serve apenas para a criatura perder todas as suas estalecas.

"Fatores externos como a radiação, o exercício e, sim, a dieta podem influenciar na metilação", reconhece a geneticista. "A questão é que não sabemos como. E, para complicar, os exames também não mostram quais genes estão metilados ou não. Por isso, estamos a anos-luz do momento em que conseguiremos afirmar que, comendo brócolis, você irá ligar determinados interruptores genéticos e que, gostando de uva, vai desligar outros."

Dos pais para o filho

Tem mais esta: o estilo de vida de uma pessoa, incluindo sua alimentação, tem mais força para alterar a própria marcação de genes ligados e desligados do que a de seus rebentos. Isso quer dizer que, se a tal modulação epigenética feita por papai e mamãe fosse factível, a fofura da Sophia poderia muito bem esculhambar com seus interruptores genéticos mais tarde, conforme seus hábitos.

Michele Migliavacca conta que os estudos sobre hereditariedade e epigenética são mais antigos e com um número pequeno de participantes. "Segundo eles, pessoas que experimentaram uma desnutrição extrema no período da Segunda Guerra tiveram crianças com tendência à obesidade", resume.

Seria como se a escassez de alimentos tivesse acionado genes capazes de levar o organismo a reter a maior quantidade de nutrientes possível. Essa característica teria sido passada para as crianças que, como cresceram em tempos de maior abundância, acabaram engordando.

"Mas não dá para, a partir disso apenas, sair afirmando que uma dieta equilibrada, ainda mais por breves seis meses, modificaria a metilação das gerações futuras", opina a geneticista.

Ainda que fosse possível...

A ideia de moldar a genética da filha e "zerar doenças" por meio do cardápio é extremamente fantasiosa por uma série de motivos. "Primeiro, se o indivíduo tem uma alteração nos genes, que seria aquela troca de letras, a metilação não vai interferir em nada. Você teria de arrancá-los do DNA, fazendo uma edição do genoma." Fora de cogitação.

Outro conceito torto é o de "genes ruins". Até o gene BRCA1, relacionado ao câncer de mama, tem uma função nobre — "ele acusa danos no material genético, como se fosse um vigia com a lanterna, examinando se há furos na cerca para que sejam feitos eventuais reparos", descreve Michele.

Na verdade, o tumor mamário aparece quando, por conta de mutações, o BRCA1 não funciona direito. Agora, vislumbre o desastre que seria simplesmente eliminá-lo.

Aliás, o mesmo BRCA1 serve para ilustrar por que não dá para zerar a probabilidade de Sophia ou de qualquer criança adoecer. Uma menina que nasce sem alterações nesse gene tem um risco de 20% de desenvolver o câncer de mama ao longo da vida. Já se ela tem o gene alterado, o risco quadruplica, vira 80%. "Mas repare: sem mutações no gene, a probabilidade nunca é igual a zero. E, com o gene alterado, nunca é 100% também. Não há extremos. ", diz a médica.

No entanto, o que liquidaria de vez a chance da tal modulação de Maíra Cardi dar certo é que, no exato instante da fecundação, é como se todos esses interruptores vindos tanto do pai quanto da mãe se desligassem para, depois, por mecanismos que permanecem desconhecidos, alguns se ligarem de novo. Ô, dó: o Arthur sem pão por seis meses e todo esse sacrifício se perder na hora agá!

O cruel disso tudo

O que Michele Migliavacca mais escuta ao receber pais de crianças com doenças hereditárias em seu consultório é a pergunta: "Doutora, e se eu tivesse feito algo diferente?" Como ela diz, "nasce o bebê, ainda mais se ele tem uma doença, e o caminhão da culpa já estaciona na casa."

É crueldade fazer com que mães e pais acreditem no engodo de que, se tivessem se alimentado de um jeito diferente, poderiam ter impedido o problema genético de um filho. Por isso, nem preciso do confessionário, aceito votação aberta: nesta semana, eu voto na Maíra Cardi para o paredão.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Na parte da quantidade de genes do ser humano, faltou a palavra 'mil' depois de 21. A informação já foi corrigida. E ainda: quando um gene está metilado, ele se encontra silenciado e não, o inverso. A colunista usou a informação da entrevista gravada, mas justo nessa hora a fonte se confundiu com a pergunta. Isso também já está corrigido.