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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pedro, Maria e as violências que ainda permitimos que aconteçam

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

21/01/2022 04h00

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Essa é uma história real e contém episódios de agressão que podem ser gatilho para algumas pessoas. Para garantir o sigilo, mudarei os nomes das personagens.

Trata-se da história de convivência entre Pedro e Maria e se passa na cidade de São Paulo. Algumas das agressões que relatarei foram presenciadas por vizinhos, colegas de trabalho de Pedro e também por amigos e familiares de Maria.

A pessoa com quem conversei primeiro foi Pedro e ele me contou sobre as agressões de forma muito natural, disse que Maria tem personalidade difícil e, por vezes, o tira do sério. Para Pedro, Maria é a maior culpada pelos momentos em que ele "perdeu a cabeça" e partiu para agressão e justifica que se ela fosse menos rebelde e mais quieta, não apanharia.

Pedro disse que, desde criança, em sua casa, esse tipo de agressão era comum, então ele não vê gravidade em agredir Maria.

Quando conversei com Maria, ela pouco falou sobre as agressões sofridas, disse que amava muito Pedro e que conviver com ele era bom e que se sentia muito amada. A única coisa que ela mudaria na relação é o nervosismo dele.

— Ele é muito bravo, qualquer coisinha já grita e vem me bater.

Pedro conta que ninguém em sua comunidade, família ou amigos dele ou de Maria se metem no momento das agressões, pois sabem que ele é esquentado mesmo e diz que já fez isso em público e ninguém se meteu.

— Tem gente que até me olha feio, mas quero ver quem tem coragem de se meter. Se ela apanha, é porque errou.

As pessoas que olham feio são lembradas a partir de um episódio que ocorreu no supermercado. Maria estava no corredor de congelados com ele e de repente sumiu. Naquele momento, Pedro ficou nervoso, pois volta e meia Maria dá perdidos nele quando estão passeando.

Quando encontrou Maria, Pedro a segurou pelo braço e o apertou, perguntando se ela era retardada por sempre sair de perto dele sem avisar. Ela, chorando, explicou que no corredor de congelados estava muito frio e por isso foi para o corredor à frente para esperá-lo. Pedro conta que as pessoas ao redor o olharam torto e, em casa, ele confessou, bateu em Maria por fazê-lo passar aquela vergonha.

Pedro também conta que certa vez chegou do trabalho cansado e só queria ficar quieto assistindo ao jogo de futebol na quarta-feira, mas Maria queria lhe contar sobre o dia. Ela fala demais, segundo ele. Pedro diz que avisou que estava vendo o jogo e não podia falar. Falou uma, duas, três vezes, até que Maria pegou o controle remoto de sua mão e desligou a TV.

Ele recorda que a segurou pelos ombros, sacudiu e perguntou se ela estava louca. Maria, trêmula e chorando, lhe disse que só queria compartilhar a leitura de um livro que tinha acabado de fazer naquela tarde. Pedro conta que se arrependeu de sua atitude, mas achou que ela não precisava chegar ao extremo de desligar a televisão apenas para falar algo tão insignificante.

Pedro já chegou a bater em Maria numa festa porque ela quebrou uma taça que, de acordo com ele, era caríssima. Em nenhuma das ocasiões as pessoas ao redor intervieram ou questionaram Pedro sobre as agressões.

Pedro não foi atendido por mim em um serviço ou clinica, ele é um amigo meu e é pai de Maria, que tem 7 anos. As agressões foram relatadas durante uma conversa sobre o livro de bell hooks "Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas", no qual a autora questiona a violência que adultos destinam aos corpos de crianças, sob a justificativa de estar educando, e que essa violência não choca a sociedade, afinal crianças, antes de serem vistas como seres humanos, são tidas como posse de adultos.

Se eu não revelasse que Pedro e Maria são, na verdade, pai e filha, essas violência teriam chocado mais? Se sim, por que a violência contra crianças, proferida em nome da educação, nos choca menos?