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Elânia Francisca

Tia Vera morreu de covid-19

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

29/01/2021 04h00

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Ano passado, no início da pandemia no Brasil, algumas pessoas me procuraram pedindo indicação de livros infantis e textos que abordassem o tema da morte com delicadeza. O desejo dessas pessoas era de conversar com crianças sobre o falecimento de alguém próximo.

Em 2017, a Lunetas publicou uma lista com cinco livros muito bonitos que trazem a questão da morte de forma muito cuidadosa.
Eu cheguei a indicar alguns materiais para uma pessoa que desejava ter velado o corpo da irmã, mas que, devido a medidas de cuidado coletivo e saúde, não pôde fazê-lo. Ela contava sobre a necessidade de viver algum momento simbólico com as crianças que eram apegadas à tia.

Foi então que escrevi o texto "Tia Vera morreu de covid-19", que apresento aqui no desejo de que contribua com o processo de luto de pessoas que estão vivendo esse momento tão difícil e delicado.

Tia Vera morreu de covid-19

Mamãe está triste.

Tia Vera morreu de covid-19.

Quem me contou foi o papai.

Mamãe está triste porque não teve despedida.

No outro ano, o vovô morreu, mas foi de outra coisa.

A gente ficou um tempão numa sala com o vovô deitado no caixão.

A vovó beijou o rosto do vovô.

Mamãe cantou para o vovô deitado.

E todo mundo se despediu do seu jeito...

Eu não sabia o que fazer e até achei chato, porque só tinha eu de criança lá, mas a mamãe disse que era importante dar tchau pro vovô.

"Despedida ajuda a terminar uma história e começar outras", disse a mamãe.

Daí o papai me colocou no colo para alcançar o rosto do vovô deitado no caixão e eu falei baixinho no ouvido dele: "Eu vim dar tchau, vovô, porque agora eu vou fazer um monte de histórias, mas não é para o senhor esquecer que eu gosto da nossa história também. Boa viagem".

Eu não sei como ele ia viajar deitado, mas a mamãe disse que ele ia morar na terra e devagarinho ia virar comida de árvore e outras plantinhas.

Então, quando eu vejo uma árvore, lembro que um pedacinho do vovô pode estar ali.

Mas para a tia Vera não teve isso. A gente só ficou sabendo que ela estava fraquinha e morreu, mas ninguém foi lá dar tchau, porque não podia. Quando uma pessoa morre de covid-19, tem que enterrar rapidinho, porque os bichinhos ainda podem sair do corpo da pessoa e ir para o nosso.

Então a gente não foi se despedir dela para não ficar doente, mas aí não tem aquela parte de dar tchau para ela deitada.

A mamãe queria dar tchau para a tia Vera e, como não deu, ficou muito mais triste. Primeiro porque nunca mais a gente vai ver a tia Vera e depois por causa das coisas que a mamãe queria falar com ela e não vai mais conseguir.

A mamãe nem queria comer direito. Mas daí eu tive uma ideia!

Eu pedi para o papai imprimir uma foto bem bonita da tia Vera e coloquei num vasinho de planta em cima de um pouquinho de terra. Chamei a mamãe e falei que a tia Vera estava deitada para ela poder se despedir.

A mamãe abraçou o vasinho e chorou bastante. O papai disse que está tudo bem a gente chorar na hora de dar tchau e que era para esperar a mamãe chorar o tempo que quisesse.

Quando ela parou de chorar, eu abri o saquinho de semente de camomila —que era o chá preferido da tia Vera — e coloquei um pouquinho na mão dela, do papai e na minha. A gente colocou em cima da foto da tia Vera e cobriu com terra.

Na escola, minha professora disse que demora seis meses para o papel virar comida de plantinhas, então acho que, se o vovô hoje mora no corpo das árvores, a tia Vera pode morar no corpo de um pé de camomila, não é?

Já faz um tempo que a gente está ficando em casa para cuidar da saúde de todo mundo e eu acho que a tia Vera ia gostar de saber que a gente deu um jeito de se despedir dela sem deixar de cuidar da gente.