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Ameaçadas de morte por maridos, mulheres se escondem em abrigo sigiloso

De Universa, no Rio de Janeiro

06/10/2022 04h00

Numa casa simples, sem conexão de internet e com endereço desconhecido, mulheres que sofreram violência doméstica e ameaça de morte vivem juntas, compartilhando a esperança de dias melhores. A rotina diária começa com o café da manhã, servido às 6h. Depois, almoço, às 11h30, lanche às 15h30, jantar às 17h30 e o último lanche às 21h. Elas têm à disposição uma equipe de cozinheiras e de limpeza.

Na hora de dormir, elas se dividem em quartos com nomes de flores, como violeta e rosa, separados por acessibilidade e número de integrantes da família —se a mulher está solo ou se tem filhos. Há casos em que as crianças acompanham a mãe no isolamento. Essa, muitas vezes, é a única forma de se proteger de um marido ou pai violento.

Todas têm acesso a uma televisão comum, que não permite conexão com a internet, e também podem utilizar computadores numa sala de leitura, mas eles são bloqueados para as redes sociais. Celular também é proibido. Caso precisem usar o telefone, elas utilizam o da sala da diretoria, sob a supervisão de uma psicóloga, uma advogada e da própria diretora. O número vai sem identificação para quem recebe a chamada.

As crianças não ficam sem estudar. Elas são transferidas de escola para unidades próximas ao abrigo ou distantes do local em que ficavam submetidas ao risco de violência. Cada caso é analisado individualmente e manter a segurança é prioridade.

Assim funciona a Casa Viva Mulher Cora Coralina, no Rio de Janeiro, que atende até 40 pessoas, entre mulheres e crianças. Universa teve acesso a imagens exclusivas (no vídeo acima) do espaço que acolhe vítimas de violência doméstica e é, como já dito, sigiloso. Todas as imagens foram feitas por funcionários da prefeitura que já tinham acesso ao espaço. Nenhuma referência que dê dicas da localização pode vazar, pois isso garante a proteção de quem vive lá.

"Não sabia que existia"

"Quando ele me agrediu, não denunciei, porque não sabia que existia um abrigo para mulheres. Ia dar queixa e voltar para casa?", questiona a dona de casa Mirele da Silva de Souza, 30, vítima de violência doméstica que viveu com três de seus quatro filhos por três meses na Casa Viva Mulher Cora Coralina, único abrigo sigiloso do Estado.

Como a moradora do Rio de Janeiro, centenas de mulheres deixam de denunciar seus agressores justamente porque não sabem que têm direito ao acolhimento. No dia em que foram feitas as imagens para Universa, havia quatro mulheres e três crianças no local.

A maioria das mulheres que chega já sofreu uma tentativa de feminicídio e está muito machucada. Além de atendimento psicológico e jurídico, elas participam de oficinas e fazem cursos de capacitação, como de costura e de trancista. Alguns são feitos na casa e outros fora, num endereço também não divulgado.

Muitas chegam em situação extrema, apenas com a roupa do corpo. Por isso o local recebe doações de roupas e material de higiene.

"Um lugar para se reerguer"

Mirele e Camila* foram agredidas pelos ex-maridos e dizem que se surpreenderam ao chegar ao lugar, que tenta reproduzir ao máximo um lar. "Formamos uma família. Tanto que tenho contato com muitas mulheres que conheci", afirma Camila, de 26 anos.

Mirele foi para o abrigo sozinha, mas as advogadas que atendem no local conseguiram recuperar três dos seus filhos após dois meses de acolhimento. Um dos quatro filhos mora com a mãe dela, na Bahia.

Já Camila deixou a filha com a avó paterna e com o pai da criança. Ela aceitou morar no abrigo após quase ter o braço quebrado pelo ex. "Precisava de um lugar onde ele não fosse me achar e me perturbar."

As duas receberam assistência psicológica e jurídica. Também foram matriculadas em curso de trancista e design de sobrancelha. "Vi pessoas desistindo porque não conseguiam ficar presas ali, mas, com o passar do tempo, você aprende que é um lugar para se reerguer", conta Camila.

As duas afirmam que a convivência com outras vítimas era boa e que uma apoiava a outra. Tanto que criaram grupo de WhatsApp para conversar após deixarem o local.

"A mulher que está ali tem que lembrar que continuar na casa com o agressor também não é bom", aconselha Mirele.

Ambas escolheram o momento de sair do abrigo quando se sentiram mais seguras. Elas conseguiram medida protetiva para que os ex não se aproximassem. Eles nem sabem onde as mulheres moram atualmente.

Quando as vítimas saem do abrigo, recebem auxílio para passagem em transporte público e um valor de R$ 400 mensais para conseguirem se manter nos seis primeiros meses, além de roupas e enxoval doados, se precisarem.

O ex de Mirele pega as crianças duas vezes por mês. Ela retirou a queixa contra ele. Já Camila ainda vive sem a filha por não ter como sustentá-la. Ela prestou queixa por injúria e ameaça contra o agressor, conforme consta no boletim de ocorrência enviado à reportagem.

O caminho para o abrigo

No Rio de Janeiro, a mulher que se sentir ameaçada e desprotegida pode procurar a equipe do Ceam (Centro Especializado de Atendimento à Mulher) ou da Cejuvida (Central Judiciária de Acolhimento da Mulher Vítima de Violência de Doméstica), do Tribunal de Justiça do Rio, para pedir o encaminhamento ao abrigo.

Entre janeiro e maio deste ano, 1.058 mulheres foram atendidas no Ceam. Nesse mesmo período, 150 mulheres e crianças foram acolhidas na Casa Cora Coralina.

Em outros lugares do Brasil, a vítima pode procurar um Cras (Centro de Referência de Assistência Social) ou Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da sua cidade. Em alguns deles, há núcleos específicos para identificar que tipo de ajuda a mulher agredida pelo marido precisa, se é psicológica ou financeira, por exemplo, e dar o encaminhamento necessário.

O Brasil ainda tem poucos abrigos disponíveis para mulheres em situação de violência. Segundo dados do Munic (Perfil dos Municípios Brasileiros) e do Estadic (Estados Brasileiros) divulgados em setembro de 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país contava com apenas 43 casas estaduais. E em somente 2,4% dos municípios brasileiros a prefeitura ofertava o serviço.

"Com o aumento de agressões e do número de feminicídios, observamos que há mais necessidade de abrigos de passagem, onde cada mulher ficaria de três a 15 dias tentando se reestabelecer enquanto busca as frentes de Justiça e os benefícios e assistências a que têm direito", explica Joyce Trindade, secretária especial de Políticas e Promoção da Mulher da prefeitura do Rio de Janeiro.

Como denunciar violência doméstica

Se você está sofrendo violência doméstica, seja ela física ou psicológica, ou conhece alguém que esteja passando por isso, pode ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

Em caso de emergência, a orientação é ligar para o número 190 e pedir ajuda à Polícia Militar.

Para denunciar formalmente, procure a delegacia próxima de sua casa, de preferência especializada no atendimento a mulheres, ou então faça o boletim de ocorrência eletrônico, pela internet.

É possível, ainda, realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das vítimas.