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'Dói menos lidar com a gordofobia do que com o abuso, ser gorda me protege'

A publicitária Juliana Aquino encontrou na obesidade uma "estratégia" contra o machismo - Arquivo Pessoal
A publicitária Juliana Aquino encontrou na obesidade uma "estratégia" contra o machismo Imagem: Arquivo Pessoal

Rosália Vasconcelos

Colaboração para o UOL, do Recife

05/09/2022 04h00

O preconceito contra pessoas gordas é capaz de gerar muita dor, traumas e até apatia social. Ele oprime especialmente as mulheres, que precisam atender às exigências estéticas sociais. Mas, em algumas situações, a gordura corporal pode ser utilizada como fator de proteção social, especialmente quando mulheres sofrem algum tipo de violência que remetem ao seu corpo, como abusos, assédios ou agressões físicas.

Em um mundo onde a mulher não está em segurança nem mesmo dentro de casa, a obesidade pode ser uma "estratégia" ao medo. Foi o que contou ao Universa a publicitária Juliana Aquino, 41.

Ela relatou que sofreu abuso de uma pessoa próxima durante toda a infância, o que afetou suas relações na adolescência e início da vida adulta, culminando com o desenvolvimento da obesidade. E foi na gordura corporal onde ela encontrou uma redoma que lhe protege contra o machismo e toda a sua violência e contra a opressão pela estética feminina.

"Engordei e vi os homens me tratarem diferente"

"Eu sofri abuso a minha vida toda, além de violência física. Como meu corpo foi violentado muito cedo enquanto eu formava a minha relação com o mundo, fui ensinada que ser bonita e chamar atenção era errado, porque aos olhos de quem me criou, eu chamei a atenção de quem não poderia.

Então, a vida toda fugi de ser a mulher que chamava atenção. Eu fui entender o privilégio da beleza muito adulta.

Quando era magra, eu tinha os códigos de beleza que a sociedade deseja, mas descobri o poder que tem para outras mulheres a figura de uma mulher gorda que se ama aconteceu tardiamente.

Como toda menina e toda mulher com o corpo dentro desse código, vivi situações de constrangimento, que me machucavam muito. Me fizeram passar experiências com o meu corpo ainda criança.

Aos 21 anos, fui trabalhar em uma empresa e o diretor passou a me assediar bastante. Chegou a apelidar meus peitos e todo dia ele dava 'bom dia' para mim e 'bom dia' pros meus peitos. Certa vez, queria que eu ficasse só com ele na empresa após o expediente para algo que podia esperar para o dia seguinte. Não obedeci e fui demitida.

Mas o gatilho para eu engordar se deu a partir de uma relação super abusiva que vivi aos 28 anos. Foi uma relação de muitos conflitos emocionais, com uma pessoa que parecia ter uma família bem estabelecida —e naquela época eu tinha um buraco de família muito grande. Eu queria fazer parte de uma família, queria ser abraçada por aquela família.

Aos poucos, percebi o tanto de abuso que existia entre eles. Mas quando eu tive essa percepção, embora soubesse que não queria mais viver aquela relação, eu estava sem condições emocionais de sair dela. Foi então que comecei a engordar, como um processo puramente emocional. Mas também passei a me ver muito confortável naquele corpo porque eu não queria mais viver a sexualidade da relação.

Naquela época, quando ganhei 20 quilos, eu já tinha desenvolvido muito do meu amor-próprio e da mulher que eu era. Então eu pude assistir com os olhos de uma mulher madura a mudança das pessoas comigo.

Eu tinha noção de que estava engordando, mas foram as pessoas que me contaram que eu era gorda e passaram a se referir a mim dessa maneira. Foi muito grande a diferença de tratamento das pessoas comigo, especialmente os homens. Se antes, na rua, nas baladas, eu era sempre assediada, depois que eu fiquei gorda, eu não era mais. E isso foi confortável para mim.

No trabalho é um dos lugares onde mais sinto segurança por ser gorda. A mulher gorda não é assediada pelo chefe ou pelos pares. Ela tem a segurança de saber que o homem vai falar com ela de trabalho e só.

Quando eu era magra, precisava ser mais incisiva para ser levada a sério e, depois que engordei, pude ser quem eu sou profissionalmente. Pude passar a ter relações mais abertas e mais comunicativas com as pessoas, porque o meu corpo não era um convite para os homens e nem uma afronta para as mulheres.

É claro que a gordofobia me machuca. Eu sinto a gordofobia de um jeito muito diferente de uma pessoa que foi socializada como gorda na escola nas suas primeiras relações. Então, eu sei que as pessoas não estão preocupadas exatamente com a saúde da pessoa gorda. Na verdade, é o medo que elas têm de engordar e o nojo que elas têm da pessoa gorda.

Já fui ofendida na casa de amigos. Certa vez, em uma viagem, estava na casa de uma amiga e quando acordei o pai dela disse: 'nossa, desculpa, eu deixei você com um lençol de solteiro. Dá para se cobrir? Você coube?'.

Mas esse mesmo homem que quis me ofender seria o que me assediaria se eu fosse magra. Já chorei muito por causa disso? Sim. Mas prefiro lidar com o preconceito do que com o assédio.

Porque o assédio é permissivo. Ele vem disfarçado de elogio, de brincadeira, e todos eles, do mais bobo ao mais sério, me levam para um lugar de vulnerabilidade muito ruim.

Não é que eu prefiro ser gorda a sofrer assédio na rua. Só que não me sinto preparada ainda para enfrentar o mundo sem essa proteção corporal que é a gordura. Então, prefiro lidar com as pessoas que acham que estão me ofendendo quando me chamam de gorda do que com o assédio e o abuso constante que lidava quando era magra.

Nosso corpo é fluido. É o espelho de quem somos. Hoje não me sinto preparada para encarar o mundo sem proteção. Na balança ainda dói menos lidar com o preconceito do que com os abusos.

Porque o abuso foi praticado por uma pessoa da família que eu amava. E a resposta para isso, emocionalmente, foi a dificuldade em confiar, especialmente no lugar do sexo e do amor. Quando o afeto começa a entrar numa relação, eu começo a ter problemas, tenho medo de me sentir vulnerável pelo que foi feito no passado.

Hoje, com 41 anos, já resolvi em mim muitas questões e hoje lido com outras melhor do que antes. É a minha história, infelizmente. É um caminho encontrar o seu lugar no mundo enquanto mulher que foi violentada. Eu vou vivendo, me fortalecendo e construindo limites que nunca foram respeitados".

Juliana Aquino, publicitária, em depoimento à Rosália Vasconcelos.