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Autor sobre 'Pantanal': 'É bonito ensinar Marias a deixarem de ser bruacas'

Bruno Luperi, autor de "Pantanal" - Globo/Maurício Fidalgo
Bruno Luperi, autor de 'Pantanal' Imagem: Globo/Maurício Fidalgo

De Universa, do Rio de Janeiro

01/09/2022 04h00

Quando Bruno Luperi, 34 anos, era criança, foi repreendido por uma tia ao andar de mãos dadas com um amigo da primeira série numa festa de aniversário. "Era a inocência se manifestando na sua forma mais pura", ele aponta. "E quando você vai cerceando o homem de qualquer sentimento, esse cara vai virar uma pessoa truculenta", conclui.

Esse é um dos motivos que levou o neto de Benedito Ruy Barbosa a trabalhar mais a masculinidade tóxica e a emancipação das mulheres na adaptação de "Pantanal" sem, no entanto, mexer na estrutura da novela escrita pelo avô e que foi um grande sucesso na TV Manchete em 1990.

"A minha decisão foi pegar os personagens pela mão e mostrar passo a passo o que é e como vencer o machismo, a homofobia, o racismo, a opressão à mulher. Acho muito mais bonito você ensinar as Marias a deixarem de ser bruacas", fala ele referindo-se ao papel hoje interpretado por Isabel Teixeira.

Mas o filho da roteirista Edmara Barbosa, com quem trabalhou —e estreou— em "Velho Chico" (2016) tem muito mais lembranças boas a revelar e que em definitivo fizeram-no trilhar o caminho da família. Como quando amassou ovos de Páscoa na cama da mãe para imitar o personagem João Pedro (Marcos Palmeira) de "Renascer" (1993), outro clássico do avô. Na trama, ele vivia em uma fazenda de cacau. Ou quando era chamado de Mezenga por causa do personagem de Antônio Fagundes em "O Rei do Gado" (1996).

Trinta e dois anos após o grande sucesso da trama, Bruno fala ainda nesta entrevista por chamada de vídeo sobre o meio ambiente, a "espinha dorsal da novela", nas suas palavras, e as dificuldades na criação dos filhos, Theo, 8 anos, e Lia, 5, que vão aparecer no fim da trama como os filhos de Juma (Alanis Guillen) e Irma (Camila Morgado).

Alcides e Maria Bruaca de apaixonaram em 'Pantanal'              -                                 Reprodução/TV Globo                             -                                 Reprodução/TV Globo
Alcides e Maria Bruaca se apaixonam em 'Pantanal'
Imagem: Reprodução/TV Globo

UNIVERSA: Qual era a sua relação com a televisão e as novelas?
Bruno Luperi:
Minha família inteira viveu intensamente os bastidores das novelas por conta do meu avô. Lembro que o tema da minha festa de 3 anos, se não me engano, foi "Pantanal". Logo depois veio "Renascer", e a gente tem uma memória muito engraçada: era Páscoa e eu e meu irmão pegamos aqueles ovos gigantescos e pisamos neles em cima da cama da nossa mãe, igual faziam com o cacau na novela. Depois veio "O Rei do Gado" e o Bruno Mezenga foi uma homenagem que meu avô fez pra mim, de botar o meu nome.

Ele colocava o nome dos netos, dos filhos nos personagens. Briguei muito na escola por causa disso, porque me chamavam de Mezenga e eu ficava bravo. Sentava o braço na molecada. Então a minha relação é muito visceral. Tem horas que a gente olha para a obra do meu avô e encontra um pouco da gente.

Como foi seu caminho até se tornar autor de novelas e quando se deu conta de que queria escrever?
Desde muito novo eu tinha interesse por desenho, pintura, escultura, design. Fui diretor de arte durante um bom tempo. Trabalhei em agências grandes até me dar conta de que eu estava contando histórias também. Aí parei de fugir e comecei a estudar mais a fundo. Vieram alguns projetos e surgiu "O Velho Chico". Minha mãe tinha escrito a primeira fase e me convidou para trabalhar com ela na sinopse, e fizemos a segunda fase juntos. Acabou que ela se afastou e eu toquei os capítulos por conta.

Mas houve alguma pressão para seguir essa carreira?
Nunca. Pelo contrário. Eles sempre deram todo o suporte para eu ir encontrando o meu espaço. Esse universo foi apresentado para mim de uma forma muito natural. Eu lembro, por exemplo, que o primeiro ator que eu conheci foi o Marcos Palmeira, na época que ele fazia "Renascer". Ele ia visitar o meu avô na casa dele, e eu olhava e falava: "O João Pedro está aí. O João Pedro chegou". Devia ter 4 anos, sei lá. Aí hoje trabalhamos juntos, e ele gravou com minha filha. Olha como é louco.

Qual era a sua expectativa sobre a novela em relação ao público, sendo "Pantanal" um clássico da televisão brasileira, além da responsabilidade de adaptar a obra de Benedito para os tempos atuais?
Nas primeiras conversas que tive com a Globo, falei que aceitava se fosse feito como um tributo ao meu avô, que para mim é o maior do gênero. E é a novela de que mais gosto. Minha primeira premissa foi não mexer na estrutura, na essência da novela. Mas se você for nas minúcias você vai ver quantas diferenças têm, quantos valores estão recolocados. Então "Pantanal" tem o seu autor original, que se chama Benedito Ruy Barbosa. Eu fiz a adaptação como uma homenagem a ele.

Bruno Luperi, autor de Pantanal - Globo/Maurício Fidalgo - Globo/Maurício Fidalgo
"A minha decisão foi pegar os personagens pela mão e mostrar passo a passo o que é e como vencer o machismo, a homofobia, o racismo, a opressão à mulher"
Imagem: Globo/Maurício Fidalgo

Com relação às adaptações, vemos as personagens mulheres falando mais sobre o feminismo, e houve um cuidado de não exibir tanto o corpo das atrizes, como acontecia antigamente. Como foi para você trabalhar essas mudanças, principalmente as que afetam diretamente as mulheres?
De fato, a consciência das pessoas despertou muito rápido nos últimos anos. Hoje a gente sabe o que é cultura do estupro, o que é feminicídio, o que é homofobia, o que é racismo, o quanto isso mata e retroage o Brasil. Então o tempo foi meu grande colaborador nessa novela. O José Leôncio (Marcos Palmeira) de 32 anos atrás não é o mesmo de hoje, e isso passa por todos os personagens.

A minha decisão foi pegar os personagens pela mão e mostrar passo a passo o que é e como vencer o machismo, a homofobia, o racismo, a opressão à mulher, como você sai de situações abusivas, de relacionamentos tóxicos. Acho muito mais bonito você ensinar as Marias a deixarem de ser bruacas. Sinto como se eu estivesse atravessando com um caminhão de carga uma estrada de ovos, porque tocar nesses assuntos é delicado. Queria ser responsável sem ser xiita ou militante. E a Maria está repercutindo com a releitura desse personagem. Assim como o Alcides (Juliano Cazarré). Achei muito importante o personagem porque somos muito Alcides ainda.

Por que ainda existem muitos Alcides?
Eu não sou antropólogo nem sociólogo, mas pouco se fala sobre o quanto é opressor ser homem na sociedade brasileira, sobre nascer homem e ser talhado para ser o pior que você pode ser, não poder mostrar sensibilidade. Pelo amor de Deus, é lógico que não estou comparando com o que as mulheres passam, mas o homem também sofre numa sociedade muito machista. Muito cuidado com essa interpretação, porque é um tema delicado.

Mas esse machismo sufocou o Alcides a tal ponto que o Zaquieu (Silvero Pereira) teve que falar para ele: "Você pode amar. Isso que você está sentindo chama-se amor, isso não te faz menos homem. Você pode dizer que está apaixonado pela Maria".

E como era sua educação e como você traz esses temas para seus filhos?
Eu lembro que estava numa festa de aniversário e peguei na mão de um amigo da minha primeira série e saímos andando. Tomei um sabão de uma tia porque "menino não pode pegar na mão de menino". Ele era meu amigo, era a inocência se manifestando na sua forma mais pura. Eu sou pai de menina e de menino também. E é um trabalho gigantesco criar o meu filho para ele poder chorar, fraquejar, poder ser ele também.

Quando você vai cerceando o homem de qualquer sentimento, esse cara vira uma pessoa truculenta, um bicho que apanhou e que foi castrado a vida inteira de sentimentos.

Você não vai acabar com o machismo legislando para prender esse cara. Talvez você acabe com o machismo formando novas gerações para poderem chorar também.

Zuleica Pantanal Aline Borges  - Globo/João Miguel Júnior - Globo/João Miguel Júnior
"Para fazer novela hoje a gente precisa falar com responsabilidade, e tem que ter representatividade", diz Bruno sobre o elenco que inclui a atriz Aline Borges, a Zuleica
Imagem: Globo/João Miguel Júnior

Na primeira versão da novela, não tinha um elenco negro, e hoje a gente tem, por exemplo, a família da Zuleica (Aline Borges). Como foi essa escolha?
Para fazer novela hoje a gente precisa falar com responsabilidade, e tem que ter representatividade. Vamos falar de Brasil? Então vamos mostrar outros tipos de rostos, de tons de pele. E na família da Zuleica tem uma questão muito forte que é: por que o Tenório (Murilo Benício) não assume essa família, que naturalmente lhe apetece mais do que a primeira, onde estão a Guta (Julia Dalavia), e a Maria é a esposa? Por que esse cara não assume a Zuleica? Porque além dele ser machista e homofóbico ele é racista.

Tive esse cuidado em ter um elenco diverso, e dar oportunidades para atores bons, independentemente do gênero, da cor. Olha a Isabel Teixeira. Uma atriz que de repente arrebentou na sua segunda novela. E não é mulher padrão, né?

Cena de Pantanal com Maria Bruaca e Juma - Globo/João Miguel Júnior - Globo/João Miguel Júnior
Bruno Luperi: "Quando eu vi a primeira foto da Alanis, falei 'é ela'. Ela tem um corporal, um desconforto, uma coisa meio animalesca, mas não é excessivo"
Imagem: Globo/João Miguel Júnior

Em contrapartida algumas pessoas criticaram a escolha da atriz que interpreta a Juma (Alanis Guillen) por ser branca de olhos verdes, depilada.
Mas a Juma é filha de paranaense. O pai é um descendente de italianos. O ponto de partida foi encontrar uma menina que tivesse um olhar de onça. Podia ser branca, podia ser negra. Nós tínhamos outros nomes, mas quando eu vi a primeira foto da Alanis, eu falei "é ela". Fazer o que a Alanis está fazendo com uma personagem muito simples é surpreendente. Ela tem um corporal, um desconforto, uma coisa meio animalesca, mas não é excessivo. E o fato de ela ser depilada foi uma decisão dela. Ela viveu com a mãe, e a Maria Marruá (Juliana Paes) tinha a sua vaidade ali né?

Qual sua avaliação sobre a forma como o país conduz o combate ao desmatamento?
Quando li a novela, num determinado momento eu liguei para meu avô e falei: "Pô, meu filho precisa escutar o que você disse aqui". Lógico que de uma outra forma. "Pantanal" é uma saga familiar que propõe um pacto do homem com a natureza, né? E nesses 32 anos que se passaram não apenas não nos reconciliamos como começamos a maltratar ainda mais a natureza.

Estamos passando por um momento político e social muito delicado, onde se legitima o crime ambiental, a perseguição a pessoas que defendem a causa. Não preciso dizer que é o momento mais sensível da nossa democracia, e algumas chagas foram abertas nos últimos anos. Quanto à parte política, é um momento tão crítico que a gente está vivendo como ver ministro que fala para passar a boiada. É preciso pensar que esse governo passa, o próximo também passa e o Brasil fica. Então me preocupo muito mais com as grandes mensagens, com a parte educativa da novela, em focar no esforço de falar sobre as Marias e os Alcides.