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'Perdi minha irmã por overdose e fiz um filme para contar a sua história'

A jornalista e cineasta Carla Di Bonito assina a direção e o roteiro do curta "Luzinete" - Arquivo pessoal
A jornalista e cineasta Carla Di Bonito assina a direção e o roteiro do curta 'Luzinete' Imagem: Arquivo pessoal

Carla Di Bonito em depoimento a Nina Rahe

Colaboração para Universa, de São Paulo

15/07/2022 04h00

"Existem algumas versões diferentes sobre a morte da minha irmã por overdose. Quando me contaram pela primeira vez, tive a impressão de que tinham visto seu corpo pelo buraco da fechadura. Ela estava sozinha no apart-hotel onde morava e minha tia, após várias ligações sem retorno, insistiu que alguém fosse dar uma olhada. Viram pela janela ela debruçada na cama e só então arrombaram a porta.

Ela estava morta havia dois dias, com um papelote de droga em uma das mãos e a agenda em outra. Na letra C, estava escrito meu telefone.

Depois soube que ela foi deixada ali para morrer sozinha, que alguém não tinha prestado socorro. Já uma amiga dela, com quem estava no dia, disse que Luzinete se drogou para morrer —ela tinha recebido o resultado positivo para HIV. Então deu uma festa, uma homenagem a São Cosme e Damião, e convidou muita gente.

Saber da morte dela por telefone foi um golpe para mim. Ninguém me ligou para avisar e, quando telefonei, uma semana depois do ocorrido, foi a funcionária da casa que avisou que minha tia não estava porque tinha ido tratar de algo decorrente da morte da minha irmã. Eu entrei em choque e acho que receber a notícia dessa maneira foi quase tão duro quanto sua morte.

'Ter sido adotada foi a melhor coisa que me aconteceu'

Até meus 7 anos achava que a Luzinete era minha prima. Mas, na verdade, éramos irmãs e sempre tivemos um elo muito forte. A nossa mãe biológica, a quem sempre chamei de tia, teve três filhas. Quando ela engravidou de mim, não era casada, por isso me deu para um casal de conhecidos e cresci em Fortaleza (CE).

Carla - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Carla Di Bonito teve de lidar com o luto: 'Saber da morte da minha irmã por telefone foi um golpe'
Imagem: Arquivo pessoal

A relação com a minha tia nunca foi boa. Ela era ríspida e não tinha nenhuma relação maternal comigo. Depois fui entender que talvez ela descontasse em mim a raiva que sentia por meu pai, que era cheio de casos e engravidou ela e outra namorada ao mesmo tempo. Lembro de uma vez em que fiquei doente, com uma febre altíssima, e minha tia, em vez de cuidar de mim, ligou para que a mamãe fosse me pegar. Fiquei internada uma semana sem que ninguém fosse me visitar.

Acho que ninguém dá o que não tem e ter me entregado para outra família foi a melhor coisa que ela poderia ter feito por mim.

Minha mágoa é pela maneira como ela me tratava quando eu estava na casa dela, nas vezes em que ia de férias para Salvador. Ali, não me sentia bem e não tinha liberdade nem mesmo para abrir a geladeira.

'Luzinete foi excluída de todos os círculos'

Quando a minha família biológica se mudou para Salvador, a Luzinete era adolescente e não foi junto. Minha tia a negligenciou muito e esse foi o seu principal problema. Todo mundo quer ser amado, valorizado, e minha irmã, na sua vida toda, não recebeu nenhum tipo de reconhecimento. Como filha, como mãe, como pessoa. Luzinete passou por um processo de degradação e começou a ser excluída de todos os círculos.

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Luzinete e a atriz Fernanda Peviani, que atua no filme
Imagem: Divulgação

Ela era muito cheia de vida e toda vez que eu a encontrava era especial. Ela tinha tanto orgulho de mim e dizia o tempo todo para os amigos que eu não era como ela. Quando percebi que ela estava indo para um caminho que não era legal, a gente saía e ela estava sempre me protegendo. Se ia fazer algo errado, pedia para me deixaram em casa antes. 'Minha irmã não é como eu', ela dizia.

'Queria ter socorrido minha irmã'

Eu saí do Brasil com 19 anos e morei em diversos países, entre Itália, Suíça, Alemanha, Noruega e Inglaterra. Quando já estava na Noruega, liguei para minha tia uma vez e ela me disse que minha irmã tinha sido presa como usuária e não como traficante. Ela tinha um filho na época, o Raphael.

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Making of do curta 'Luzinete'
Imagem: Divulgação

Ela foi presa duas vezes e o negócio estava cada vez pior.

A gente continuou se falando. Às vezes a comunicação se espaçava, mas ela chegou a me visitar quando eu estava na Itália. Na época, eu morava em uma instituição religiosa e depois passei a fazer Au Pair, trabalhando em troca de moradia —só pude me estabelecer mais tarde, já na Inglaterra, quando consegui um emprego na BBC World Service.

No nosso encontro, ela me contou que tinha arranjado um parceiro alemão. Ela queria se casar e se estabelecer, só que não tinha nenhum juízo e também se prostituía.

'Vivi a morte dela quando fiz o filme'

Sinto que vivi a morte da minha irmã quando fiz o filme. A última cena a ser gravada foi a da overdose e eu quis filmar de uma vez, sem repetição de takes. Fiquei em um canto, quietinha, e quando a cena começou, eu vi a minha irmã morrer.

E agora, toda vez que revejo o curta, as imagens são tão verdadeiras que sinto que estava lá. E era onde eu queria estar, ali com ela. Queria ter podido socorrê-la, tirar a droga da mão dela.

Um mês e meio depois das filmagens, a Fernanda Peviani, atriz que interpretou a Luzinete, me ligou dizendo que tinha sonhado com ela em um espaço sem luz, com uma energia ruim, e minha irmã tinha deixado que ela a ajudasse, levando-a para um lugar iluminado, na natureza. No momento em que ela me contou isso, entendi que a finalidade do meu filme foi dar reconhecimento à minha irmã e permitir que saísse da penumbra. Desde que ela morreu, em 2000, sempre quis homenageá-la porque, em vida, não cheguei a dizer que também tinha orgulho dela.

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Carla no set com a cinegrafista italiana Martina Erriceta
Imagem: Divulgação

O filme foi o presente que dei para minha irmã e o presente que ela me deu. Durante todos esses anos, queria fazer algo para impressionar a minha família biológica. Quando saí do Brasil, eu falava cinco línguas, fazia dança, esportes, saltos ornamentais. Mas tudo que eu fizesse era invisível ou insuficiente para eles. Hoje acho que surpreendi todo mundo.

Me formei em Jornalismo e Cinema, me casei, me separei, criei dois filhos, adotei uma terceira criança sozinha e, agora, com este curta, que já passou por 17 festivais, estou me lançando na carreira de cineasta. E isso foi graças à minha irmã Luzinete."

Carla Di Bonito, 56 anos, é jornalista e cineasta, e assina a direção e o roteiro do curta "Luzinete"