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Medo e perseguição: o atual cenário dos EUA para mulheres que buscam aborto

Ativistas protestam em frente à Suprema Corte americana, em Washington, em favor do direito ao aborto - AFP/2019
Ativistas protestam em frente à Suprema Corte americana, em Washington, em favor do direito ao aborto Imagem: AFP/2019

Luciana Rosa

Colaboração para Universa, de Nova York

04/07/2022 04h00

A decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos para revogar o direito constitucional ao aborto, garantido desde 1973, não significa que a prática está proibida em todo o país, mas sim que estados com governos mais conservadores irão endurecer as leis e, inclusive dificultar a ida de gestantes a outros lugares para abortar. A criminalização e a coação de mulheres, inclusive, já está acontecendo.

Para entender se esse novo cenário já está afetando a população americana, Universa conversou com duas ativistas pelos direitos reprodutivos nos EUA: Emiliana Guereca, fundadora do Women´s March Foundation (Fundação da Marcha das Mulheres); e Verónica Bayetti Flores, do Center for Advancing Innovative Policy (Centro para o Avanço de Políticas Inovadoras).

O que mudou?

Quem trabalha há muitos anos na defesa dos direitos reprodutivos ressalta o aumento da demanda por interrupções de gravidez em certos estados, onde a prática é liberada. "Mais pessoas vão tentar conseguir um aborto de qualquer maneira", aponta Verónica. "Mas, dependendo do lugar em que viverem, mesmo que abortem em outro, elas poderão ser criminalizadas", avalia.

A situação com relação ao aborto está muito mais crítica em estados com legisladores republicanos, como é o caso do Texas ou do Mississipi, ou nos quais os procuradores-gerais de cada distrito decidirem investigar os casos.

Além disso, os estados que já anunciaram ou devem colocar em vigor em breve a proibição do aborto são aqueles que também possuem maior porcentagem de áreas rurais ou estão mais próximos da fronteira com o México, por exemplo.

"Em lugares de mais difícil acesso, zonas rurais por exemplo, onde é preciso viajar longas distâncias, as mulheres terão mais motivações para buscar um aborto por sua própria conta", opina Verónica, ressaltando que isso se daria de forma não segura. Ela diz ainda que essas mulheres, caso consigam a pílula utilizada para interrupção de gravidez —recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde)— também correrão o risco da criminalização.

No Texas, por exemplo, desde setembro de 2021, o estado oferece uma recompensa de até US$ 10 mil (cerca de R$ 53 mil) a toda pessoa que denunciar alguém que esteja levando a cabo um aborto ou ajudando alguém a praticá-lo.

"Criminalizar outras pessoas é algo que já acontece, muitas vezes também nos hospitais, entre médicos, enfermeiros e assistentes sociais, que podem denunciar uma mulher pensando muitas vezes que a perda de uma gravidez possa ser um aborto", diz Verónica.

Possíveis alternativas

Diante do cenário de novas barreiras ao aborto, as mulheres que advogam pelo direito de decidir acreditam que a educação e a circulação de informação são a chave para driblar as restrições.

"Temos que garantir campanhas de educação, que digam como acessar o aborto como cuidado de saúde. E temos que promover encontros, como fizeram as mulheres da Argentina", diz Emiliana. Ela afirma que é preciso observar o que passou na América Latina, onde mulheres não tiveram medo de lutar e movimentos agiram de forma coordenada. "Acredito que podemos aprender muito nos inspirando nisso", conta.

Uma das apostas são as redes informais para conseguir medicação ou perfis que difundam informação a respeito, como a Plan C, que se define como uma campanha de informação, formada por defensores da saúde pública, pesquisadores, ativistas da justiça social e estrategistas digitais, que atuam em favor do acesso de pílulas abortivas via correio.

"Essas redes informais já existem porque, ainda que fosse tecnicamente legal, em muitos lugares era muito difícil de conseguir e também existem, por várias razões, pessoas que preferem realizar o procedimento por conta própria", explica Verónica.


Medo e perseguição

O medo da criminalização e da perda da privacidade fez com que, nos dias que se seguiram à decisão da Corte Suprema, muitas mulheres apagassem de seus celulares os aplicativos que monitoram o ciclo menstrual.

Elas temem o rastreamento de seus dados menstruais, em meio a temores de que possam ser usados contra elas em futuros casos criminais nos estados onde o aborto se tornou ilegal.


No entanto, a maioria dos casos de mulheres criminalizadas nos Estados Unidos por praticar um aborto, são novamente as mulheres de cor e imigrantes.

Como é o caso Lizelle Herrera, 26, que foi acusada de assassinato em decorrência de um "aborto autoinduzido" em março deste ano no sul do Texas. Ela foi presa, mas os promotores retiraram as acusações de assassinato, admitindo que ela não havia cometido um crime. A mulher foi indiciada depois de abortar e supostamente disse à equipe de um hospital que havia tentado induzir seu próprio aborto. A equipe então a denunciou à polícia.

"São mulheres imigrantes que, em suas comunidades, têm a sabedoria de como terminar uma gravidez sem contar com ajuda legal. Mas, se algo dá errado e ela tem que ir ao médico ou algum vizinho fica sabendo, isso poderia gerar uma denúncia", avalia Verónica.

Mulheres negras e imigrantes: as mais prejudicadas

Emiliana aponta que "as mulheres latinas, negras e menos recursos sempre foram as mais afetadas" com esse tipo de decisão nos Estados Unidos. "O aborto sempre esteve disponível, mas os mecanismos para um aborto legal e seguro não foram acessíveis para mulheres latinas e negras. Agora será ainda pior, e elas serão, certamente, as mais afetadas com essa decisão", diz.

Uma das alternativas para essas mulheres seria viajar para poder abortar. No entanto, além do fato de alguns estados já estarem elaborando leis que impeçam esse tipo de viagem, essa é uma opção muito custosa.

"Viajar vai ser muito difícil, o custo mínimo de um aborto é de US$ 500 (cerca de R$ 2.560), você precisa somar a isso o custo da viagem, o dinheiro perdido no tempo que essas pessoas não poderão trabalhar, a espera pelo procedimento. Ainda sem lei impedindo, já era algo muito difícil no sentido econômico. Agora, será impossível", lamenta Verónica.

Eleições legislativas e uma luz no fim do túnel

Além das possibilidades de ajuda a mulheres que querem abortar, se ancorando em organizações e em estados com legislações que apoiem mulheres, as ativistas americanas veem outra possível saída para o atual cenário: a aprovação de uma lei federal, como a já proposta pelo Congresso com o nome de Women's Health Protection Act, ou Lei de Proteção à Saúde da Mulher. O projeto englobaria garantias relacionadas aos direitos reprodutivos.

No entanto, uma legislação como essa só seria real caso os parlamentares liberais fossem maioria na política americana —já houve pelo menos duas tentativas de levá-lo à votação, ambas fracassadas.