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Pauta antiaborto nos EUA é tática para inflar conservadores, diz socióloga

Ativistas pró-aborto protestam na Suprema Corte dos EUA contra novas restrições - Reprodução/Instagram @kevfog
Ativistas pró-aborto protestam na Suprema Corte dos EUA contra novas restrições Imagem: Reprodução/Instagram @kevfog

Rute Pina

De Universa, em São Paulo

03/05/2022 20h22

O movimento feminista nos EUA está em alerta. Isso porque o rascunho de um relatório de um ministro da Suprema Corte americana, vazado na imprensa local, indica que pode existir maioria no tribunal para derrubar o direito ao aborto no país, conquistado em 1973.

No texto, ainda não divulgado oficialmente e obtido pelo site Politico, o ministro Samuel Alito afirma que há maioria na corte para derrubar a decisão conhecida como Roe versus Wade.

O rascunho foi escrito provavelmente para embasar o voto do ministro sobre o caso do estado de Mississippi, onde há um projeto para impedir abortos depois de 15 semanas de gravidez. A Suprema Corte analisa o tema.

Ativista do movimento feminista e pelos direitos reprodutivos no Brasil, a socióloga Tabata Tesser, integrante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, enxerga a divulgação do rascunho como uma estratégia para inflar grupos da direita conservadora, relacionados à figura do ex-presidente republicano Donald Trump.

Tesser explica que o tema do aborto muitas vezes é utilizado como moeda de troca em momentos decisivos da política. No caso dos EUA, o país passa por eleições legislativas em novembro deste ano e também por um reposicionamento geopolítico e diplomático, com a guerra entre a aliada Ucrânia contra a Rússia e a medição de forças com a China.

"Essa estratégia de mobilização de afetos e desafetos que movem a pauta do aborto é antiga", analisa a socióloga. "É muito sintomático que a divulgação deste rascunho apareça meses antes das eleições. O aborto é uma moeda de troca na política."

Nos EUA foi criada uma jurisprudência favorável ao aborto em 1973. A decisão conhecida como Roe versus Wade, que marcou jurisprudência em uma maioria dos estados do país onde havia leis similares em vigor, estipula que "o direito ao respeito da vida privada, presente na 14ª Emenda da Constituição (...), é suficientemente amplo para ser aplicado à decisão de uma mulher de interromper, ou não, sua gravidez". Pelo sistema federativo, no entanto, cada estado pode regulamentar o tema de forma autônoma.

Trumpistas querem impor derrota a Biden

Tesser também analisa que grupos trumpistas utilizam a discussão do aborto para impor uma derrota ao governo de Joe Biden, que fez declarações positivas sobre o direito à interrupção da gravidez.

"Essa movimentação localiza um grupo diante do jogo eleitoral para recolocar a base de Trump a partir de um tema que pressiona o campo progressista americano. Se houver um retrocesso ou redefinição da lei seria uma vitória de Trump. Apesar de ele não ser o presidente, isso representa os anseios dos republicanos, dos estados e governantes e o colocaria, de novo, na cena eleitoral", avaliou Tesser.

Para a socióloga, o avanço de uma discussão contra o aborto no país é perigoso pois pode ser usado como incentivo a movimentos semelhantes em outros países.

Os EUA são uma vitrine legislativa e de agenda para o resto do mundo. Este rascunho pode dar argumentos para questionar vitórias recentes latino-americanas em relação à garantia do aborto, como as que ocorreram na Colômbia e na Argentina. Tabata Tesser, socióloga

"Em relação ao Brasil, há um alinhamento programático e político da agenda do presidente Jair Bolsonaro e de Trump de criminalização máxima ao aborto. A divulgação desse rascunho é uma estratégia de recolocar este tema no debate público. E aqui também vai ser utilizado como moeda de troca eleitoral", acrescenta Tesser.

A psicóloga Shyrlene Brandão, integrante do Fórum Nacional dos Serviços de Aborto Legal, também considera que uma possível decisão de retroceder direitos em relação ao aborto nos EUA pode inflar movimentos semelhantes em outras regiões, como a América Latina.

"Esse retrocesso de direitos pode ser uma força para os discursos contra os direitos das mulheres, mas acredito que a gente tenha força para manter, no mínimo, os direitos que conquistamos aqui", afirma.

Clima de hostilidade

Segundo Brandão, o fortalecimento destes grupos pode ajudar a criar um ambiente hostil também a profissionais, como ela, que trabalham com o aborto em casos previstos na Constituição.

"Trabalhamos com capacitação e sensibilização das pessoas. Se começa uma onda de discussão da criminalização do aborto em lugares onde esse direito já estava assegurado, isso pode colocar em questão os serviços que estão dentro da legalidade", aposta. "Pode gerar um clima de hostilidade e de questionamento no discurso das pessoas. Mas não acredito que, na prática, possa impedir que a gente continue trabalhando."

De rascunho a uma alteração na legislação, ainda há um caminho a ser percorrido, lembra Tabata Tesser.

"Essa definição vai depender da confluência da mobilização social que este tema vai ter nos próximos meses. Há vários movimentos feministas e interseccionais que discutem a justiça reprodutiva no país. Então, agora, depende muito da mobilização social. A tarefa agora é acompanhar e denunciar este tipo de estratégia."