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Aborto na Argentina: 'Me senti julgada, mas pude seguir com minha vida'

Aline Gatto Boueri

Colaboração para Universa, de Buenos Aires

23/06/2022 04h00

Giuliana Veliz - Victoria Novara/UOL - Victoria Novara/UOL
Imagem: Victoria Novara/UOL

"Não tenho filhos e, até agora, nunca desejei ser mãe. Aos 26 anos, descobri que estava grávida e decidi abortar. Na época, eu não sabia se o serviço de aborto legal estava funcionando bem na Argentina, se eu seria bem tratada. Tenho consciência de que possuo privilégios. Tenho um plano de saúde e acesso a informações. Defendi a legalização do aborto e fui às manifestações. Mas, quando passei pelo aborto como uma experiência pessoal, fiquei insegura.

Na época, eu tinha um namorado, de quem eu engravidei. Estávamos juntos havia mais de dois anos, e a relação já não estava legal. Quando descobri a gravidez, ele perguntou o que eu queria fazer, e eu disse imediatamente que queria abortar. Esse primeiro momento foi tranquilo, mas depois eu senti que ele tratava aquilo como se fosse um problema meu, do qual ele queria fugir.

Ele me pediu para não contar a ninguém que eu ia abortar. Uma vez, enquanto caminhávamos na rua, o assunto surgiu e ele pediu para eu falar baixo para ninguém escutar. Vi que ele encarava aquilo como tabu.

Passou um mês entre a descoberta da gravidez e a conclusão do processo de aborto. Nesse intervalo, eu decidi terminar a relação. Não queria passar por isso ao lado de alguém que me fazia sentir culpada. E agora estou aqui, solteira, contando essa história.

Quando decidi pela interrupção da gravidez, me comuniquei primeiro com um grupo de Socorristas [feministas que acompanham abortos com medicamentos]. Fui chamada para uma reunião, que aconteceu uma semana depois. Nesse intervalo, eu fiz a primeira ultrassonografia, em uma clínica particular. Estava com medo de procurar o sistema de saúde público, mesmo com a legalização do aborto.

A ultrassonografia confirmou que eu estava grávida de seis semanas. Fiquei tranquila, porque sabia que teria tempo para fazer o procedimento, que é legalizado até a 14ª semana de gestação. Mesmo assim, eu estava com pressa. Me sentia mal, tinha muitos enjoos.

Levei a ultrassonografia à reunião das Socorristas, onde havia outras mulheres na mesma situação que eu. Lá, nos explicaram como abortar com Misoprostol e me deram o medicamento. Também pediram uma contribuição financeira voluntária [normalmente, serve para cobrir os custos operativos das ativistas que acompanham os procedimentos]. Naquele momento, eu não me sentia confortável com a situação.

Tínhamos um grupo de WhatsApp com duas Socorristas, que me acompanharam a distância no dia em que eu usei o Misoprostol. Essa primeira tentativa falhou, e eu comecei a ficar nervosa. Falei que precisaria de mais comprimidos. Fiz uma nova contribuição financeira, mas não cheguei a usar o remédio, porque eu ia viajar a San Luis, no interior da Argentina, para visitar minha família. Preferi esperar até voltar a Buenos Aires, onde eu moro.

Logo antes da viagem, comecei a me sentir muito mal. Estava frágil, tinha náuseas. Decidi procurar um CeSAC [Centro de Saúde e Ação Comunitária, similar às Unidades Básicas de Saúde no Brasil], onde pedi diretamente uma consulta com a equipe de Interrupção Voluntária da Gravidez. Fui muito bem atendida.

Nesse mesmo dia, fiz outra ultrassonografia e recebi o medicamento abortivo de forma gratuita na própria unidade de saúde.

O trajeto entre San Luis e Buenos Aires dura 11 horas de ônibus. Durante a viagem de volta, eu comecei a perder a gravidez. Foi muito traumático, porque eu expulsei o feto no banheiro do ônibus.

Quando cheguei em casa, tomei um banho e voltei ao CeSAC, onde me tranquilizaram. Fui orientada a voltar dois dias depois para fazer uma nova ultrassonografia. Foi aí que eu descobri que ainda não tinha expulsado tudo, e meu útero estava cicatrizando com material biológico.

A equipe do CeSAC me encaminhou com urgência para o Hospital Dr. Cosme Argerich Treble, um hospital público no bairro de La Boca, onde eu fiz uma curetagem uterina. Aí eu vi que a legalidade ainda não chegou a todo o sistema de saúde. Era dia 30 de dezembro de 2021, aniversário de um ano da aprovação da legalização do aborto pelo Congresso.

Esperei por cinco horas no pronto-socorro obstétrico. Em um determinado momento, falei que estava assustada, que meu caso era urgente. Uma enfermeira respondeu que primeiro atendem as mamães, depois os abortos.

A partir daí eu fiquei quieta, com medo. Eu estava sozinha e vulnerável. Na hora, pensei: 'Depois eu lido com isso, agora eu só quero resolver'. Meu ex-namorado chegou quando estavam prestes a me atender, mas quem passou a noite comigo no hospital foi uma amiga. A curetagem em si foi rápida, mas o que veio depois foi muito ruim. Me senti julgada e castigada.

Uma das enfermeiras perguntou se eu tinha abortado ou perdido a gravidez. Fiquei imaginando que, se eu desejasse aquela gravidez e estivesse perdendo o bebê, aquela pergunta me machucaria muito.

Hoje faz todo sentido para mim aquela frase que muitas feministas repetiam durante as mobilizações pela legalização do aborto: 'O que humaniza o embrião é o desejo materno'.

Na manhã seguinte à curetagem me deram uma receita com medicamentos. Não me explicaram muito, mas disseram que se eu não pudesse comprá-los, precisaria passar mais uma noite no hospital para que me aplicassem de maneira intravenosa.

Graças à amiga que me acompanhou, que foi comprar os remédios, pude passar o Ano Novo em casa.

Todas as vezes em que eu fui ao CeSAC, me explicaram que eu precisava retornar para escolher um método anticoncepcional, distribuído gratuitamente pelo sistema de saúde. Acabei marcando uma consulta com uma ginecologista do plano de saúde, que me atendeu muito bem e me ajudou a escolher um método de prevenção de gravidez.

Depois do aborto, eu me senti livre. Pude seguir em frente com a minha vida, que tinha ficado paralisada. Enquanto não interrompi a gravidez, me senti presa no meu corpo.

Eu só consegui contar para minha mãe depois de umas semanas. Achei que ela fosse criticar minha decisão, mas ela me acolheu. Desde que contei a minha experiência, o assunto deixou de ser tabu na minha família. Hoje, minha mãe também defende o direito ao aborto."

Giuliana Veliz, 27 anos, é jornalista e produtora audiovisual na Cidade Autônoma de Buenos Aires, na Argentina