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De santa a prostituta: Grace Gianoukas usa 'humor feminino' contra opressão

Grace Gianoukas comemora 40 anos de carreira com espetáculo revisitando personagens - Reprodução
Grace Gianoukas comemora 40 anos de carreira com espetáculo revisitando personagens Imagem: Reprodução

Tainá Goulart

Colaboração para Universa, de São Paulo

25/05/2022 04h00

A mente de Grace Gianoukas é uma máquina criativa. Desde que saiu do Rio Grande do Sul, em meados dos anos 1980, a atriz entendeu que a vida precisa de mudanças. "Se tem uma coisa que aprendi e coloquei em prática, nesses anos todos de carreira, foi que a vida é impermanente", reflete ela, que escolheu o palco, claro, para comemorar os 40 anos de jornada como atriz, autora, diretora, produtora e por aí vai.

Na peça '"Grace em Revista", ela abre suas memórias e interpreta grandes papéis de sua trajetória, como Aline Dorel, Santa Paciência, Advogada do Diabo, Adolescente Girassol, Preguiça, Mulher Limão e Cinderela —a maioria mulheres, em uma tentativa de trazer histórias as quais o público se identificasse por ser, além de trágico e cômico, real.

"Procurei dar voz às mulheres por meio das personagens, mas com humor. Uma delas, por exemplo, entende que é prostituta porque, para ela, essa profissão é de alguém que transa em troca de dinheiro, e ela, em seu casamento falido e que só se mantém pelos filhos, percebe que é a famosa 'puta que pariu'", diz. "O humor feminino cresceu muito nos últimos tempos e precisamos celebrar essa conquista, não só pelas comediantes, mas por estarmos dando voz aos assuntos e opressões das mulheres."

Em 1985, Grace fundou a própria companhia teatral, Harpias e Ogros. Criou, produziu e atuou em dezenas de espetáculos até 1991. Depois, em 2001, foi a vez de revolucionar a comédia contemporânea no Brasil com um de seus maiores sucessos, o projeto "Terça Insana", formado por espetáculos teatrais em que diversos atores faziam monólogos de seus personagens. O objetivo principal era fazer um humor que não fosse calcado no preconceito e que as piadas fossem sempre originais. "Nada de piada fácil", como ela diz. Além do teatro, Grace conquistou os brasileiros com personagens em novelas, como Teodora Abdalla, de "Haja Coração", da Globo, exibida em 2016.

"Na carreira artística, assim como em várias coisas da vida, a gente não tem controle. Uma hora, aquela ideia que você acha sensacional não desenrola, pois não está no tempo certo. Você tenta, tenta, e tenta, mas não vai. Então, do nada, a coisa dá certo. Já passei por alguns momentos de querer ser aceita, fazer sucesso, mas hoje, com 40 anos de carreira, não preciso provar mais nada para ninguém", reflete.

UNIVERSA - Uma trajetória de 40 anos te permite dar conselhos de carreira. Quais daria para nossas leitoras?
Grace Gianoukas - Que tudo é impermanente, com momentos de muito fracasso. Para seguir fazendo o que mais amo, entendi que a gente precisa arriscar e saber esperar. Você pode ter uma ideia, tentar, tentar, e tentar, mas aí não é a hora dela. Falo para as pessoas que elas precisam arriscar mais quando acreditam em suas ideias com força e sabem do potencial que têm. Foi o que eu fiz e vou continuar fazendo. Porém, também aprendi que temos que saber a hora de dizer chega.

Que tipo de reflexão surge após percorrer tanta estrada e prestes a completar 60 anos?
Eu sempre sonhei que, quando fizesse 40 anos, estaria mais tranquila. Mas, hoje, com 58, estou um pouco longe disso. Na verdade, atualmente, me vejo como um Google, que espera questionamentos dos outros para trazer conexões. Estou feliz de ser assim e pretendo continuar nessa linha.

Você veio para São Paulo aos 21 anos. Foi difícil ser uma mulher jovem tentando realizar seu sonho?
Naquela época o mundo estava gritando, mudando, criando. E eu estava interessada em conhecimento, em explorar as novidades. Foi o Caio (Caio Fernando Abreu, escritor e amigo) que me levou para São Paulo. Foi transformador. Fazia faculdade e larguei. Na minha vida artística, William Shakespeare tem menos importância do que Rita Lee, pois não estava interessada em conhecimento acadêmico.

O ´Terça Insana' é um projeto que revolucionou a comédia teatral no Brasil. Como ele nasceu?
Foi um projeto que partiu das muitas descobertas que fiz ao longo da minha trajetória. Acabei criando um método. Passei ele para uma galera, principalmente do ponto de vista da criação de personagens surpreendentes, pois era pegar o motivo da piada e botar no palco para dar o seu ponto de vista sobre o mundo. O oprimido tem voz, tem bom humor. Essas foram uma das várias coisas que descobri com o 'Terça Insana' e que levei para a vida. Quando esse projeto nasceu, eu tinha uma coisa muito bem definida.

Para mim, não era possível que a gente ainda continuasse rindo do oprimido e, na minha cabeça, se a gente quisesse mudar o mundo, esse tipo de atitude não colava mais. Nas diretrizes do 'Terça Insana' sempre piadas novas, nunca prontas ou batidas, o preconceito ou a humilhação do outro eram proibidos, e era preciso buscar outros pontos de vista para dar voz para quem nunca teve. Grace Gianoukas, atriz.

Então, a gente tinha o personagem analfabeto que escreveu um livro; da portuguesa, que era burra mas vem falar de José Saramago, enquanto vocês, brasileiros me trazem Paulo Coelho. Ou seja, é brincar com olhares disruptivos, trazer questionamentos.

Essa crítica também é direcionada ao tratamento dado às mulheres?
Sim. Procurei dar voz às mulheres, cuja opressão ainda é maçante. Uma das personagens, por exemplo, entende que ela é puta, pois, em suas várias leituras, entende que essa profissão é de alguém que transa em troca de dinheiro, e ela, em seu casamento falido e que só se mantém pelos filhos, percebe que é a famosa 'puta que pariu'. Entende as nuances? O humor feminino cresceu muito nos últimos tempos e precisamos celebrar essa conquista, não só pelas comediantes, mas por estarmos dando voz aos assuntos e opressões femininas.

Seus projetos são muito autorais, mas você também faz novela. É muito diferente?
Para mim, uma coisa são as minhas criações artísticas, que vêm da minha alma. Outra, que eu também lido, é a indústria do entretenimento, que não tem nada a ver com meus anseios artísticos. Nela, eu sou só um parafuso que me encaixo no mercado. Arte e mercado são duas coisas muito diferentes. Já passei por alguns momentos de querer ser aceita, fazer sucesso, mas, hoje, com 40 anos de carreira, não preciso provar mais nada para ninguém.

Você é uma mulher cheia de projetos e que se realiza por meio deles. Qual o impacto da pandemia nisso?
Todos os meus projetos dançaram. Aliás, os meus e de todo mundo, né? Mas desde quando comecei, trabalhando de garçonete para pagar as contas e para comprar coisas para os espetáculos que estava criando, a persistência foi a palavra que mais usei. A vida de um artista é de fazer bicos, de pular de galho em galho para sobreviver. Além disso, estive sempre rodeada de pessoas que me apoiaram e que me incentivaram. Na pandemia, não foi diferente. E, indo além, foi um 'intervalo' que nos colocou para revisar muita coisa, especialmente o que escolhemos para viver, morar, conviver.

O que passou por essa revisão na sua vida?
Para mim, a grande lição foi a de que não podemos nos apegar à falsa sensação de segurança, pois o mundo está mudando constantemente e de forma mais rápida. Na pandemia, quem não tomou um calmante, um fitoterápico, uma água com açúcar, para se acalmar? A gente precisava parar e se questionar, rever conceitos. Mas todos os dias eu procurava bons motivos para fazer as coisas. Arrumei tudo que deixei para outro momento, inclusive o meu acervo de figurinos das peças.

Atualizou algum personagem para os tempos atuais para seu novo espetáculo?
Sim, trouxe novos questionamentos. Um exemplo: a Cinderela, que é uma dependente química e traficante de drogas, diz que o produto dela é orgânico e que sua maquiagem é totalmente sustentável, surfando nessa onda de preservação do meio ambiente. São personagens que marcam o meu ponto de vista do humor, da vida, e que falam dos oprimidos, dos esquisitinhos.

Tem regra para fazer rir?
Quando um artista fala que sabe o que o público gosta, do que vai dar risada, para mim, ele é arrogante porque não sabe do que está falando. Fórmulas de piada não dão certo o tempo todo, pois o público está cada vez mais diverso. O que rompe barreiras é o que te arrebata e te arranca daquele lugar de falsa sensação de permanência. Para você achar alguma coisa engraçada, aquilo tem que estar dentro do teu entendimento, da tua cultura, do que tu acha lúdico.