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'Sofri abuso na infância e hoje ajudo crianças que passaram pelo que vivi'

Daniela Generoso, 41 anos, chegou a morar na rua e hoje cuida do Instituto É Possível Sonhar, no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal
Daniela Generoso, 41 anos, chegou a morar na rua e hoje cuida do Instituto É Possível Sonhar, no Rio de Janeiro Imagem: Arquivo pessoal

Daniela Generoso, em depoimento a Priscila Carvalho

Colaboração para Universa

04/04/2022 04h00

"Tive uma infância bem dolorida. Fui abusada sexualmente e torturada fisicamente pelo meu padrasto. Na época, morava com ele e com a minha mãe. Os abusos começaram aos quatro anos de idade e eu era ameaçada de morte, caso eu contasse o que estava acontecendo. Aos 17 anos, quando não aguentava mais, saí de casa e fui morar na rua. Morei um tempo na Rodoviária Novo Rio. Vivia de quentinhas [marmitas], esmolas e lavava o banheiro da rodoviária para ter algum dinheiro. Passei cinco meses ali, até que fui resgatada por uma igreja, que me colocou em uma colônia de meninas.

Nunca cheguei perto de drogas, mesmo algumas pessoas oferecendo para mim. Um tempo depois, quando já estava com 19 anos, conheci meu marido, que morava na avenida em que a minha mãe e meu padrasto viviam. Consegui me casar e, aos poucos, comecei a me reerguer.
Quando tinha 20 anos, tive um surto psicótico, pois era um outro homem tocando em mim e aquilo me causou medo. Me lembro de ter me sentido muito invadida, parecia que estava vivendo o abuso novamente.

Fui internada no hospital da aeronáutica, onde meu pai biológico era militar. A médica sugeriu ao meu marido que me internasse, mas ele não quis. Segui fazendo tratamento psicológico, psiquiátrico e fui cada vez mais me interessando por essas áreas.

Quando saí da casa de minha mãe, já estava formada no ensino médio. Decidi cursar psicologia na faculdade Estácio de Sá depois de receber muita ajuda psicológica e psiquiátrica. Passar na faculdade foi uma grande realização depois de ouvir que nunca conseguiria nada na vida e que não prestava para nada. Fiz, ainda, uma pós-graduação e, no fim de 2019, fui aceita em um mestrado no Instituto Ibero-Americano, na Espanha.

Quando passei nesse curso, muita gente me falava que eu tinha nascido para a psicologia social. Naquela época fui fazer uma viagem de trabalho e estudo para Santa Catarina com uns amigos, que me incentivaram a fundar uma ONG, já que oferecia atendimentos gratuitos para crianças que não podiam pagar.

Daniela Generoso - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Daniela Generoso com o marido, Jefferson Salgado Generoso, 49 anos, e os filhos, Pedro (19) e Daniel (17)
Imagem: arquivo pessoal

Em dezembro daquele ano, fundei o Instituto É Possível Sonhar, no bairro do Irajá, na zona norte do Rio de Janeiro. Na época, amigos próximos começaram a me ajudar financeiramente, como fazem até hoje.

'Meu intuito era dar voz às crianças vítimas de violência'

Nosso trabalho consiste em receber crianças para atendimento clínico e formação continuada e atuar como centro social multidisciplinar, mas não funcionamos como abrigo. Além disso, desenvolvemos atividades terapêuticas e psicoeducativas de lazer e cultura em período complementar ao horário escolar.

Atendemos diariamente meninos de 6 a 13 anos, meninas de 2 a 16 anos e mulheres de 22 a 58 anos. As denúncias chegam até nós por meio do conselho tutelar, do Ministério Público, de escolas e vizinhos.

Eu queria que, assim como eu, muitas crianças fossem ouvidas. No entanto, conforme íamos trabalhando, percebíamos que as mães também eram silenciadas.

Começamos a oferecer atendimento psiquiátrico, psicológico, principalmente a mulheres que estavam em ciclos de violência. Também fornecemos cursos profissionalizantes para que elas possam ser inseridas no mercado de trabalho.

O Instituto era gerido por mim, mas faz dois anos que descobri um câncer de mama —que agora está no cérebro. A doença foi acabando comigo, hoje não consigo estar sempre lá. Não tenho mais pique.

Os amigos que conhecem meu trabalho e sabem da seriedade me ajudam com doações, já que sempre presto contas.

No início da ONG éramos sete e, hoje, somos 50 voluntários. Geralmente, quem trabalha lá são todos voluntários, que passam por uma entrevista rígida.

Atualmente, para manter o Instituto, precisamos de muitas doações: ar-condicionado, computadores, dinheiro para pagar aluguel.

'A maioria dos abusos ocorre dentro de casa'

Os pais estão sem tempo de olhar para os filhos e muitas vezes não percebem o abuso. A criança sempre fala, por meio da mudança de comportamento. Geralmente, 80% dos abusos ocorrem dentro de casa, com pessoas da sua confiança. São pais, tios e até mães.

Tive um caso no Instituto em que uma garota de 13 anos engravidou do próprio pai. A gente só descobriu no quinto mês e ela não pôde fazer o aborto. O pai está foragido e também é ligado ao tráfico. Também já ouvi de uma menina (agora com 13 anos) que ela não queria mais brincar com boneco de verdade (ela tinha um bebê).

É pesado e a gente não se acostuma. Mas acho que eu aprendi a lidar com o problema. Como cuido da minha doença, hoje fico mais na parte burocrática e cuido dos casos mais graves. A terapia é uma excelente blindagem para tudo, pois você precisa trabalhar sua cabeça e focar no resultado: essa criança precisa acreditar e sonhar.

'Quero expandir o Instituto para o restante do Brasil'

Eu imagino um Instituto em cada estado do Brasil e ampliando os atendimentos. Quero dar voz às crianças que são silenciadas por ameaças.

Eu não vou poder nunca impedir que uma criança seja vítima de abuso. Mas vou poder dar uma segunda voz e oportunidade a ela, assim como eu tive.

Também desejo que muitas mulheres que são violentadas possam ressignificar e acreditar que sempre é possível sonhar, apesar da dor."

Daniela Generoso, 41 anos, psicóloga e fundadora do Instituto É Possível Sonhar, no Rio de Janeiro