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Psicóloga levou médicos para quadra do Salgueiro e hoje atende 500 por mês

A psicóloga Vilma Araújo coordena o projeto Sambando com Saúde desde 2008 - Thiago Bernardes/UOL
A psicóloga Vilma Araújo coordena o projeto Sambando com Saúde desde 2008 Imagem: Thiago Bernardes/UOL

Luiza Souto

De Universa

03/04/2022 04h00

Aos 61 anos, a comerciante Valquíria Santana Silva ainda quer pisar muito na avenida, mas para não deixar o samba morrer precisa frequentar assiduamente as sessões de fisioterapia que faz gratuitamente na quadra do Salgueiro, no Andaraí, zona norte do Rio de Janeiro. Ela é uma das cerca de 500 pessoas atendidas ao mês pelo projeto Sambando com Saúde, que leva para dentro da agremiação médicos de 14 especialidades diferentes a custo zero para a população de todo estado —e de fora também.

"Sou autônoma e não posso pagar R$ 100 por uma fisioterapia. Se não fosse esse atendimento, jamais ficaria boa. Ainda trago meu neto de 11 anos para acompanhamento psicológico e com fonoaudiólogo", conta a baiana de Salvador, que sente fortes dores no nervo ciático, mas não falta um ensaio.

É a maranhense Vilma Araújo, 56, quem coordena a equipe médica que atua na vermelha e branca desde 2008. Filha de empresário, a psicóloga chegou ao Rio aos 9 anos com os 10 irmãos e os pais. Aos 16, conheceu o marido, então passista da escola.

As visitas e a consequente identificação com a comunidade renderam convite para atender seus frequentadores. Quando se deu conta, ela, que clinicava no Hospital Universitário Pedro Ernesto, já tinha levado parte dos colegas de trabalho para atuar no local, que fica a menos de 10 minutos de distância do Hupe. Hoje são 12 mulheres e 4 homens se dividindo entre especialidades como geriatria, dermatologia e acupuntura. Segundo Vilma, os serviços mais buscados são o de fisioterapia, ginecologia e cardiologia.

Atento à entrevista que aconteceu na tarde de quarta-feira (30), Luiz Carlos Orelha, 78, ouviu uma leve bronca da psicóloga porque andou faltando às consultas com o "médico do coração", como ele chama. E ainda tentou se defender.

"Mas estou sempre aqui fazendo fisioterapia. E agora estou cuidando da próstata", ele garante.

A psicóloga Vilma Araújo é coordenadora do centro médico do Salgueiro - Thiago Bernardes/UOL - Thiago Bernardes/UOL
Vilma conta que todo trabalho na escola é feito de forma voluntária, com doações e parcerias
Imagem: Thiago Bernardes/UOL

"Não temos ajuda de custo, mas de pessoas"

Além desses atendimentos, Vilma consegue oferecer óculos e aparelho dental a quem precisa, fruto de parceria com empresas e clínicas. Nenhum dinheiro sai do caixa do Salgueiro, ela garante. O presidente Andre Vaz dá o suporte que o centro médico precisa junto aos parceiros. Recentemente sua gestão fez uma grande reforma no local.

"Não temos ajuda de custo, mas de pessoas. Tudo que temos foi doado, como móveis, computador e remédios. A escola mantém a estrutura física. E também paga o exame ginecológico das mulheres, que é feito por um laboratório parceiro a preço popular."

Eu peço tudo. Meu apelido na quadra é pidona

Como agradecimento, cada voluntário ganha uma camisa da escola para desfilar na Marquês de Sapucaí. E eles ainda atendem no dia dos desfiles, se precisar. "Antigamente, o cardiologista ia na ala das baianas e ficava maluquinho."

A psicóloga Vilma Araújo é coordenadora do centro médico do Salgueiro - Thiago Bernardes/UOL - Thiago Bernardes/UOL
Vilma Araújo coordena e também faz consultas dentro da quadra do Salgueiro
Imagem: Thiago Bernardes/UOL

Atenção especial às vítimas de violência de gênero

Quem se beneficia dos atendimentos garante que em menos de um mês consegue marcar consulta e fazer exames, se necessário. Com o rápido serviço prestado dentro da escola, a população passou a preterir os serviços de saúde pública da região.

Ao observar esse movimento, a prefeitura do Rio procurou Vilma para uma parceria, e passará a enviar profissionais como assistente social para atuar dentro da quadra também. Segundo a psicóloga, o atendimento possibilitará cadastrar mais moradores no SUS (Sistema Único de Saúde) e encaminhá-los mais rápido à rede pública.

Além de contribuir para atender a mais pessoas, outro grupo ganhará atenção especial com essa ação: as mulheres vítimas de violência. Isso porque a assistente social disponibilizada pela prefeitura já está conversando com cada mulher e identificando as que sofrem abuso, para depois fazer um atendimento mais humanizado.

"Ainda não precisamos encaminhar vítimas para a delegacia registrar boletim de ocorrência contra o agressor, mas mandamos para o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) ou Cras (Centro de Referência da Assistência Social). A maioria depende muito dos maridos financeiramente, então primeiro a gente tem que ver se elas têm condições e direito a algum benefício para depois saber se vamos denunciar", explica Vilma.

É o caso da Geni*, 53. Atenta à conversa, ela fala pela primeira vez sobre o estupro que sofreu há três anos. Na mesma época, descobriu que três dos quatro filhos também foram violentados quando ainda eram crianças. Pelo próprio pai deles.

"Vou falar agora para vocês algo que ninguém sabe. Uma das minhas filhas contou recentemente que meu ex-marido enchia a casa de homens, e todos mexiam nas partes das minhas filhas. Hoje elas têm crise de pânico e uma já foi internada em hospital psiquiátrico."

"Ele bebia muito e também me batia e me passava doença sexualmente transmissível. Já me separei dele, e tem três anos que fui estuprada pelo meu ex-patrão. Ele não queria pagar o que me devia e fez aquilo. Ainda tirou foto depois. Não denunciei porque ele falou que conhece meus filhos. Só de falar começo a tremer, então corro pra cá para conversar e chorar."

A sala onde tanta gente é acolhida fica em silêncio. Minutos depois concluímos que vítimas como Geni precisam muito mais que fazer um BO.

"Tem caso que não dá para denunciar, como esse da Geni. Então encaminho para o Centro Municipal de Saúde Maria Augusta Estrella, que é um serviço de assistência especializada em HIV/Aids, para cuidar dessas mulheres. Uma psiquiatra de lá vem aqui também atender", detalha Vilma.

A psicóloga Vilma Araújo é coordenadora do centro médico do Salgueiro - Thiago Bernardes/UOL - Thiago Bernardes/UOL
Vilma orienta os pacientes atendidos no projeto Sambando com Saúde
Imagem: Thiago Bernardes/UOL

Resistência no início

Foi somente na sua atuação enquanto psicóloga que Vilma ouviu histórias de violência de gênero. Até então, admite, vivia numa redoma, como ela mesma descreve. "Era patricinha, filhinha de papai. Com 16 anos tinha babá e não sabia fazer nada."

Sem muito contato com a realidade da comunidades mais carentes, Vilma diz que percebeu certa resistência dentro da escola no início. Havia desconfiança sobre aquela mulher vinda de fora sem familiaridade com o samba e que nunca havia subido um morro.

Bem no começo ouvi coisas do tipo: 'ela só quer camisa de diretora, não quer nada'. Tentaram tirar minha camisa no meio da avenida. Até provar que você está ali porque gosta é difícil

Mas a desconfiança foi superada, ela garante. Universa também: nos ensaios que acompanhamos Vilma, presenciamos integrantes indo abraçá-la a cada canto da escola.

Hoje, além de atuar no Salgueiro, Vilma também atende em um Creas, coordena uma equipe multidisciplinar em projeto social numa vila olímpica e mantém dois consultórios, na Tijuca e na Barra da Tijuca, na zona oeste, onde mora

"Um dia desses, meu marido perguntou quanto tempo levava uma consulta e pediu para marcar horário para ele", brinca ela, mãe de um homem de 31 e um de 27.

"Tem a azulzinha hoje?"

Vilma diz que o número de homens e mulheres que procuram os serviços é relativamente igual. Mas logo depois admite: para isso acontecer, tem que ficar no pé da ala masculina.

"Eu vou na bateria buscá-los e faço eles marcarem médico. Não os deixo soltos. Antigamente, quando passava por eles, pediam pelo 'azulzinho', e eu respondia que só teria se fossem ao urologista. Uma mulher chegou a reclamar que tinha que ficar correndo do marido porque toda vez que vinha para consulta levava um", ela ri.

Qualquer pessoa que comprove baixa renda pode receber atendimento na escola, inclusive de fora do Estado. As marcações para consultas e exames acontecem às segundas, das 10h às 14h, e às quintas, das 18h às 21h.

*O nome da personagem foi alterado por questões de segurança