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Brasileira que decidiu ficar na Ucrânia: 'Acham que é sentença de morte'

A jornalista Paula Correia Pereira, que vive na Ucrânia - Arquivo Pessoal
A jornalista Paula Correia Pereira, que vive na Ucrânia Imagem: Arquivo Pessoal

Natália Eiras

Colaboração para Universa, de Lisboa

01/03/2022 04h00

A jornalista Paula Correia Pereira, 36 anos, despertou sobressaltada na madrugada de quinta-feira (24) com o barulho de cinco explosões. Até então, ela não imaginava que as ameaças de conflito entre Rússia e Ucrânia, país onde reside desde outubro de 2020, se tornariam realidade. "Quando acordei, com o coração na boca, eu pensei: a invasão começou", conta em entrevista por vídeo a Universa.

Casada há oito anos com um ucraniano, a brasileira de Jundiaí (SP) mora em Odessa, cidade no sul da Ucrânia, às margens do Mar Negro, porta de entrada da invasão comandada pelo presidente russo Vladimir Putin. "As pessoas dizem que, ao ouvir uma explosão, passa um flash por seus olhos, mas em mim não passou nada. Só levantei da cama e olhei pela janela", fala Paula, que tem enfrentado noites difíceis.

A gente ficou muito vigilante. Durante o dia, tem a falsa sensação de que vai conseguir ver e prever o perigo. Tenho tomado calmante, mas passo a maior parte da noite acordada.

Enquanto conterrâneos têm usado caronas e feito longas jornadas de trem ou ônibus para deixar a Ucrânia, Paula decidiu ficar no país. Apesar de explosões e toques de sirenes de ataques aéreos fazerem parte da rotina, Odessa não está sofrendo tanto com o conflito.

"Por enquanto, me sinto mais segura aqui do que tentando passar a fronteira. Nós vamos, ao longo dos dias, avaliando quais os riscos que queremos passar. No momento, prefiro passá-los em casa", fala a jornalista. O marido de Paula, Sergei, não poderia, ainda, deixar o país. Desde o início do conflito, a Ucrânia está sob a lei marcial e proíbe a saída do país de ucranianos de 18 a 60 anos.

"Como ter paz sabendo que meu marido ficou? Juntos, nós nos fortalecemos."

Veja, abaixo, o relato de Paula para Universa:

Paula e o marido ucraniano, Sergei - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Paula e o marido ucraniano, Sergei
Imagem: Arquivo Pessoal

"Eu e meu marido nos casamos em 2014 e moramos a maior parte do nosso tempo juntos no Brasil. Em outubro de 2020, ele conseguiu um emprego remoto como programador em uma startup de Hong Kong e decidimos que, por conta do fuso horário, seria mais fácil morar na Ucrânia, país onde ele nasceu.

Achei interessante, porque queria passar uma temporada aqui, queria ter a oportunidade de viver uma outra cultura, mesmo tendo que me separar da minha mãe.

Até eu ouvir o barulho das explosões, acreditava que um acordo entre a Ucrânia e a Rússia poderia ser feito. Não conseguia crer que, em 2021, chegaríamos a este ponto. Nos dias de hoje, alguém teria coragem?

O clima entre os ucranianos era completamente normal. No dia anterior à invasão, fui tomar um café com a minha professora de russo. As pessoas ainda iam à praia, ao bar, à balada. A iminência do conflito era apenas uma conversa que eles tinham em momentos de intimidade, com a família.

Por outro lado, os especialistas da Europa diziam que a guerra ia acontecer. A gente achava que estavam exagerando. Meu marido, no entanto, acreditava que o conflito aconteceria, mas que seria algo mais focado em Kiev, capital da Ucrânia. Não imaginávamos que teria essa dimensão.

Antes da invasão, nós conversamos sobre a possibilidade de deixar o país, mas não chegamos a um consenso. Eu achava que era exagero deixar tudo para trás. Era tão ingênua que falei que decidiríamos quando a guerra começasse. Meu marido falou: 'E vai deixar o país pode onde? O aeroporto é o primeiro alvo'. Dito e feito.

Na virada da noite de quinta-feira (24), acordei com explosões aqui em Odessa. Quando eu as ouvi, percebi que tinha acontecido. A guerra havia começado.

Bateu um desespero, meu coração subiu para a boca. Dizem que passa um flash pelos seus olhos, mas eu não vi nada. Levantei da cama, olhei pela janela e nada. Estamos no décimo andar, nosso apartamento é todo envidraçado e não conseguia ver de onde tinha vindo aquele som. Isso foi o que mais me assustou: o perigo está ali e você não sabe de onde vem.

No primeiro dia, quando as pessoas começaram a entrar em pânico e a deixar o país, eu fiquei bastante dividida. Há duas fronteiras próximas de Odessa: Romênia e Moldávia. Uma vizinha que saiu ontem para aquela direção de carro disse que levou 1h30 para sair do país.

Meu marido me aconselhou a sair da Ucrânia. Quando descobri que ele não poderia ir comigo, me bateu um desespero. Estávamos fadados a ficar aqui, vulneráveis. Meu marido me viu fragilizada e disse que, se fosse para ficar mais calma, ele preferiria que eu fosse embora. Como é que eu ia deixar ele sozinho? Como teria paz sabendo que ele ficou para trás, correndo o risco de ser convocado? Fazer essa viagem, nessa loucura? Quem saiu às pressas teve uma jornada muito difícil. E, juntos, nós nos fortalecemos.

Desde então, a cidade ficou muito silenciosa. Não há mais criança brincando na rua, as lojas estão fechadas, as casas abandonadas. Como a primeira explosão foi à noite, ficou muito difícil dormir. As noites se tornaram de vigilância. Tomo calmante, mas passo a maior parte da madrugada acordada, grudada nos noticiários. Porque, por mais que esteja silencioso e calmo, sabemos que algo está acontecendo. Isso nos consome psicologicamente.

Nos primeiros dias, os supermercados, farmácias e postos de gasolina estavam cheios de fila. Agora, não há muita gente, mas eles já estão desabastecidos. Nós ouvimos, em média, duas explosões por dia —aquelas de tremer as paredes. Geralmente, respostas da Ucrânia a algum ataque russo.

A sirene de ataque aéreo também costuma tocar diariamente. Temos um grupo no WhatsApp com outros brasileiros por meio do qual trocamos informações sobre o que está acontecendo na cidade, ficamos de olho para dar o apoio necessário.

Temos um toque de recolher que começa às 19h, e a recomendação é que a gente não saia de casa. Caso deixe a residência, corre o risco de ser indagado por vigilantes ucranianos. Há uma recompensa para quem captura russos. Meu marido passou por uma situação com eles quando foi checar o abrigo antibombas mais próximo de nossa casa.

Ainda assim, a situação em Odessa está tolerável. Quem vê as imagens de Kiev, onde há bombardeio todos os dias, acha que a decisão de ficar é uma sentença de morte, mas não é assim. Agora eu tenho teto, uma cama, comida, internet para me comunicar com a minha família, tranquilizá-la. Por enquanto, estou segura aqui.

Agora na rua, eu não sei o que pode acontecer. Isso me fez entender que, se for para correr risco, eu prefiro correr esse risco em casa. A situação em Odessa está tolerável. Se as coisas escalarem como está acontecendo em Kiev, talvez eu tenha que sair. A questão é que estou vendo até onde estou disposta a seguir esse risco. Mas, se eu atingir o meu limite, eu vou procurar ajuda para ir embora.

A comunidade brasileira está muito unida. Tem gente levando as pessoas de van até a fronteira, muitas pessoas oferecendo estadia, carona, formas de deixar o país. Entendo que há oportunidades, mas a minha decisão, por enquanto, é ficar.

Acabando a guerra, decidimos que vamos voltar para o Brasil. Não temos mais clima para ficar aqui. Quando tudo isso passar, quero voltar para o abraço da minha mãe, a cultura que a gente carrega e se sentir em casa de novo. Nossa intenção nunca foi ficar aqui, mas falei para o meu marido que, depois dessa, eu quero sossego."