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'Aos 38, fiz transplante de pulmão. Aos 44, fui bicampeã de 100m rasos'

Liege Gautério após vitória nos Jogos Mundiais de Transplantados: "Medalha histórica" - arquivo pessoal
Liege Gautério após vitória nos Jogos Mundiais de Transplantados: "Medalha histórica" Imagem: arquivo pessoal

Liege Gautério em depoimento para Rafaela Polo

Colaboração para Universa

14/02/2022 04h00

"Desde os cinco anos pratico atividade física. Comecei fazendo balé e nunca mais parei. Na adolescência, fazia ginástica, musculação, natação, corrida... Já fiz de tudo um pouco. Aos 30 anos, em 2003, descobri que tenho fibrose pulmonar [causada por lesão e cicatrização do tecido do pulmão], e me disseram que não tinha tratamento. Hoje, sei que há algumas medicações, mas na época não havia essa opção. Desde então, sabia que, provavelmente, precisaria de um transplante de pulmão.

Foi um susto, mas como não tinha nenhum sintoma clássico da doença, que causa falta de ar e cansaço com os mínimos esforços, fui convivendo com o problema e tendo em mente que, talvez, um dia, chegaria meu momento de precisar da cirurgia. Só depois de seis anos do diagnóstico é que comecei a sentir falta de ar durante meus exercícios, nas corridas e em atividades corriqueiras, como subir escadas. Fui atrás do serviço de transplante na Santa Casa de Porto Alegre para ser avaliada.

Nunca senti medo. Como sabia que em algum momento precisaria de transplante, deu tempo de me acostumar com a ideia. Mas foi só dois anos depois, em 2011, que comecei a piorar bastante e usar oxigênio 24 horas por dia, principalmente para caminhar e tomar banho. Nesse momento, eu já estava torcendo para entrar na lista de transplante. Queria voltar a ter minha vida normal.

Já estava muito debilitada quando finalmente entrei na lista. Fiquei confiante e positiva que meu momento estava chegando. Minha mente estava bem forte, ainda mais porque passei por situações delicadas.

"Minha vida estava por um fio"

Para tomar banho, por exemplo, eu usava dez litros de oxigênio e, ainda assim, minha saturação caía. Realmente estava por um fio. Cinco meses após entrar na lista, recebi a ligação em que me informaram que havia um pulmão para mim. Fiquei eufórica.

Liege Gautério - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Liege foi a 1ª brasileira no Mundial de Transplantados
Imagem: arquivo pessoal

Durante a evolução da minha doença, resolvi realizar o sonho de fazer faculdade de educação física. Já era formada em biologia e fonoaudiologia. Fui na minha formatura, dois meses antes do transplante, me arrastando, mas queria me formar.

Na cirurgia, recebi um pulmão esquerdo. O direito continuou doente. Vivo até hoje apenas com um pulmão, que funciona muito bem.

"Fui a primeira brasileira a participar dos Jogos Mundias de Transplantados"

Em 2015, descobri que havia jogos mundiais para transplantados e resolvi participar. Fui buscar mais informações e, no ano seguinte, já parti para a competição. Minha primeira participação foi nos jogos em Mar del Plata, na Argentina. Foi aí também que fiquei sabendo que seria a primeira mulher brasileira a participar do mundial. Fiquei muito contente com essa informação, tanto pela inclusão quanto pela representatividade feminina em um jogo que já estava em sua 20ª edição.

Me inscrevi para participar das provas de 100 e 200 metros rasos do atletismo bem despretensiosamente. Meu principal objetivo era mostrar que transplantado tem, sim, qualidade de vida.

Muita gente acha que somos pessoas doentes e com limitações. Queria mostrar também a importância da doação de órgãos. Eu só estava ali vivendo e celebrando porque tive a chance de viver de novo por causa de uma doação.

Na hora da prova de 100 metros rasos, fui para a pista, me concentrei, me lembrei das orientações do meu treinador e, quando foi foi dado o tiro da largada, corri com todas as minhas forças. Faltando uns 20 metros, percebi pela minha visão periférica que não via ninguém e comecei a repetir na minha cabeça: 'Não é possível', porque eu ia ganhar. E assim foi.

Cruzei a linha de chegada e joguei as mãos para o céu para agradecer. Recebi a notícia que tinha levado o ouro — o primeiro feminino do Brasil. Em forma de agradecimento, doei minha medalha para o museu do hospital que me acompanha. É histórica e queria que ela fosse lembrada por todos os envolvidos.

Liege Gautério - Edu Andrade - Edu Andrade
Atleta coleciona medalhas e está em busca do tricampeonato
Imagem: Edu Andrade

Desde então, participei de mais dois mundiais. No meu segundo, também fui medalha de ouro nos 100 metros rasos, por isso, sou bicampeã.

Hoje, sou professora de educação física, e sempre brinco com meus alunos que tem gente com o pulmão perfeito que não dá uma volta na quadra, enquanto eu me exercito e cuido da minha saúde.

Com foco nisso, também idealizei um projeto para incentivar os transplantados a se exercitarem. Chama Se Mexe TX [tx é a sigla para transplantados]. Comecei a receber diversos feedbacks positivos sobre a qualidade de vida de pacientes, dizendo que as equipes médicas estão dando parabéns, que a saúde melhorou. Os transplantados também podem voltar a viver.

Neste momento, aos 49 anos, estou me preparando para o próximo mundial, que será realizado na Austrália em 2023. Estou correndo atrás de patrocínio, mas enquanto isso, me preparo para tentar conquistar o tricampeonato. Seria inédito. Os homens já conseguiram ouro, mas ninguém é bicampeão em sua modalidade. Sou a única com a possibilidade do tri. Vamos ver se dá para buscar alguma coisa e, com isso, também incentivar a doação de órgãos.

Na pandemia, as doações caíram muito, e trabalho para essa causa também. Se estou aqui é porque alguém me salvou."

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que informado, a modalidade disputada por Liege é 100m rasos, não livres.