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Feministas negras debatem papel de homens na luta e questão 'raça e gênero'

Feministas negras e a relação com o papel social do homem negro: por que há debate sobre "prioridade" de raça e gênero? - Drazen Zigic/Getty Images/iStockphoto
Feministas negras e a relação com o papel social do homem negro: por que há debate sobre "prioridade" de raça e gênero? Imagem: Drazen Zigic/Getty Images/iStockphoto

Nathália Geraldo

De Universa

20/12/2021 04h00

Se você já acompanhou alguma discussão na internet quando um homem negro é reprimido ou condenado por uma atitude em que supostamente prejudicou alguém, pode ter esbarrado na pergunta de pessoas que queriam analisar a situação e decidir de "que lado" ficariam: "O que vem antes: raça ou gênero?"

Ícones de correntes do feminismo negro, como a filósofa Angela Davis e a escritora bell hooks, que morreu aos 69 anos nesta quarta-feira (15), nos EUA, e as filósofas Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, no Brasil, já pavimentaram uma base teórica na discussão sobre as experiências de mulheres e homens negros, analisando também o papel das mulheres e dos homens brancos, em sociedade. Mas, nas redes sociais, o debate parece não sair de cena.

Para algumas pessoas, homens negros que erram têm um nível de "cancelamento" maior do que se a mesma ação tivesse sido feita por um homem branco; por isso, "raça" vem sempre antes. Já para outras, quando uma mulher branca acusa um homem negro de ter feito algo contra ela, por exemplo, é a luta pela defesa do "gênero" que deve ser o norte da discussão.

A análise, dizem as feministas negras consultadas por Universa, passa por um termo bem importante na teoria feminista: a interseccionalidade. Ou seja, para entender as opressões sociais como racismo e machismo, ou outros sistemas discriminatórios, é preciso entender a inter-relação de raça, classe e gênero, por exemplo. E, onde ficam os homens negros nessa perspectiva, afinal?

Feminismo negro e os homens: como pensar relações

Historicamente, pensadoras feministas negras estudam e escrevem sobre homens negros. bell hooks, por exemplo, escreveu em 2004 o livro "We Real Cool: Black Men and Masculinity" ("A gente é da hora: homens negros e masculinidade", ainda sem edição no Brasil), sobre eles e masculinidade patriarcal, abordando a forma com que expressam suas afetividades e o fato de homens negros não serem amados, culturalmente. Não há uma bandeira anti-homem fincada em sua perspectiva.

Ao mesmo tempo, são as feministas negras que trazem à tona o fato de que homens negros, se são vítimas do racismo, participam também do patriarcado e reproduzem o machismo e outras violências, submetendo mulheres a essa lógica.

Para dar conta da complexidade desse jogo é que a interseccionalidade entra na roda. Não dá para separar opressões (nem as lutas contra elas) em caixinhas, como analisa a arquiteta e escritora Joice Berth.

"Enquanto feministas negras, estamos na base da pirâmide e somos as mais atingidas pelas opressões. Então, não dá para deixar de lutar ao lado da mulher branca, mesmo sabendo que podemos ser vítimas [do racismo delas], e não dá para deixar de lutar ao lado do homem negro. Abster-se disso é reforçar esse lugar na pirâmide para nós mesmas."

O feminismo negro também se preocupa com a restituição da humanidade do homem negro, diz. Mas as mulheres que seguem as teorias feministas não se eximem de fazer críticas a eles. "Se tem um homem negro assediando uma colega no ambiente de trabalho, esperar o que para chamar atenção desse rapaz?".

Casos midiáticos, diz a arquiteta, expõem o quanto a questão é ainda sensível à população negra.

A questão racial vira um imbróglio porque se você critica um homem negro publicamente usam isso para endossar um viés racial.

"Fato é que temos dois exemplos: mesmo com vídeo mostrando o DJ Ivis com uma acusação de violência contra mulher, ele voltou com um respaldo social; anos atrás, o cantor Netinho, do Negritude Junior, teve um caso de violência doméstica e isso afetou definitivamente a carreira dele".

'Refletir sobre eles não é isenção de responsabilidades', diz feminista negra

Feminista negra e formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com a pesquisa "Nova ordem democrática de direitos e machismo no Brasil: um descompasso entre as normas jurídicas e a realidade social", Aline Juliete avalia que o feminismo negro se propõe a pensar mudanças sociais, de combate à desigualdade, em uma perspectiva ampla. Parte, sim, da experiência de mulheres negras, mas vai além disso.

"Permite refletir sobre o genocídio do homem negro, a violência policial contra ele, a forma com que o corpo, dele e da mulher negra, é hipersexualizado. Refletir sobre lugares sociais não significa isentar as pessoas que os ocupam de suas responsabilidades", analisa.

Nesse esforço de também "resolver os próprios BOs", Joice classifica que o lugar do homem negro no feminismo negro é de ouvir e aprender. "Eles devem ficar na condição de aprendizes, porque a gente traz apontamentos necessários que são focados nas opressões de gênero e de raça que atingem nossas vidas", diz.

"Há, sim, para eles uma masculinidade moldada pela supremacia masculina, e isso pode até gerar tormentos mentais e emocionais para eles. Mas, eles também devem se questionar sobre isso, porque não há como confrontar sistemas estruturais sem desconforto e sem embate."

Para Aline, que é mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da UFRN em pesquisa no campo das políticas públicas educacionais e estuda interseccionalidade, é comum ver a desigualdade de gênero permanecer dentro da luta contra o racismo, e a de raça, na luta feminista que não considera marcadores sociais diferentes em uma mesma pessoa.

Rever isso, aliás, é uma pauta abordada pelas feministas e mulheres negras em geral. Senão, continuaremos em subalternidade. No movimento feminista hegemônico, por sua vez, se não pautarmos a questão racial, somos engolidas pelo modelo universal de mulher que nos impõem.

Luta coletiva: 'São nossos filhos, irmãos, pais'

A questão "raça e gênero", dizem as ativistas, tem mais um lado: o das mulheres, sobretudo, negras, que sofrem quando seus filhos, maridos, irmãos, negros, são alvo de racismo, em episódios de violência policial ou entram nas estatísticas do genocídio da juventude negra.

"Se não vou para o combate com essas mulheres, de alguma forma fortaleço aquilo que pode abater meu lar em outro momento, quando meu filho é parado pela polícia", pondera Joice. "Isso compromete nossas vidas pessoais. Por isso que é importante ter bell hooks, Angela Davis, Lélia para nos apoiar."

Aline reforça que, considerando-se feministas ou não, são essas mulheres que fazem a luta ser coletiva. "Elas sabem que quando um menino negro desaparece, no Brasil, serão as mais afetadas. Por isso, também são as que estão na batalha por dignidade nas comunidades periféricas e pelo fim da violência que afeta os homens negros."