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Vítima de estupro no RJ tratada com descaso por policiais: 'Me sinto morta'

Vítima que não conseguiu fazer exame de corpo de delito por falta de peritos registrou Boletim de Ocorrência e está tomando medicamentos - Arquivo pessoal
Vítima que não conseguiu fazer exame de corpo de delito por falta de peritos registrou Boletim de Ocorrência e está tomando medicamentos Imagem: Arquivo pessoal

Daniele Dutra

Colaboração para Universa, no Rio

07/12/2021 04h00

Uma mulher de 36 anos que foi vítima de estupro no Rio de Janeiro quando estava a caminho do trabalho fez o reconhecimento facial do suspeito, mas o criminoso ainda não foi preso porque a Polícia Civil está na dependência de alguns exames, entre eles o espermograma. Mulher negra, a contadora G.R., que preferiu não ser identificada, foi abusada sexualmente em Bangu, zona oeste do Rio, no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, e foi tratada com descaso por policiais. "Me sinto uma morta com o coração batendo", diz.

Após o crime, G.R. foi a algumas delegacias e ao IML (Instituto Médico Legal) para conseguir registrar a queixa e fazer o exame de corpo de delito, mas o direito foi negado a ela por duas vezes: uma por não haver legista no final de semana para esse tipo de crime e outra pelo IML não ser na mesma região em que o episódio ocorreu. Só depois de muitas ligações e contatos com amigos dos amigos que tinham conhecidos na Polícia Civil foi que a contadora, após mais de 15 horas depois do crime, conseguiu fazer o exame.

Além de ter a integridade psicológica e emocional abalada, G.R. está tomando um coquetel antiviral para prevenir doenças sexualmente transmissíveis, foi afastada do trabalho por mais de um mês por não conseguir sair sozinha na rua e iniciou nesta semana um acompanhamento psicológico.

'Ele sabia o que estava fazendo'

O crime aconteceu entre 5h30 e 6h da manhã de sábado (20), quando G.R. estava a caminho da indústria de alimentos onde trabalha. Para chegar à empresa, a contadora costuma pegar duas conduções, mas, por ser feriado, o transporte fica mais escasso, então decidiu andar pouco mais de 2 Km para pegar um ônibus que a deixaria mais próxima da fábrica. Quando chegou na Avenida Almirante Aymara Xavier de Souza, uma pessoa saiu de dentro de um terreno baldio usando calça jeans, mochila e casaco preto e deu bom dia para G.R.. Segundo a vítima, parecia que estava indo trabalhar, até que encostou do seu lado esquerdo, sacou uma uma arma e disse: "Vem, me segue e não grita".

Em entrevista a Universa, a contadora decidiu contar sobre os momentos de terror e descaso durante e após o crime: "No primeiro momento foi terrível. Esse cara me levou para dentro do terreno, me assaltou, torturou, sempre muito calmo, tranquilo? Ele sabia o que estava fazendo. Me deixou nua e depois de me violentar, jogou minha roupa longe, para um lado que eu não consegui identificar. O tempo todo eu tinha que ficar de costas e ele falava para eu não olhar para ele. Depois de me violentar, ele saiu pelo mesmo lugar por onde entrou", disse a vítima.

'Implorei para que os policiais me levassem para casa'

Nua e desesperada, ela saiu correndo do local do crime e se deparou com duas viaturas da Polícia Militar. Ao pedir ajuda, G.R. foi tratada com descaso e precisou implorar para que os agentes a levassem para casa: "Eu estava chorando muito, pedia pelo amor de Deus para me tirarem dali. Primeiro eles acharam que eu era uma louca, depois uma drogada, e então eles falaram 'a gente não pode sair daqui, estamos em uma ocorrência com um carro'. Eu implorava dizendo 'moço, eu preciso ir para casa, eu não tenho nada, olha como eu estou'. Um deles se compadeceu, disse que me levaria e chegou a falar 'poxa, eu não tenho nenhuma camisa, minha mochila ficou em casa'. Aí o outro disse, em tom de deboche, 'ah, só se você tirar a sua farda'", contou G.R., que conseguiu que a levassem para casa, mas ao longo do caminho precisou responder diversas perguntas, se era casada, com quem morava, o que estava fazendo ali àquela hora, sempre em tom de deboche.

Ao chegarem no endereço de G.R., a entrada de sua rua tinha um portão que precisava ser acionado com controle. Os policiais queriam que ela saísse do carro e andasse cerca de 50 metros naquele estado, nua, até a porta de casa: "Implorei pedindo pelo amor de Deus para que um deles ligasse para minha mãe, que estava dormindo aquela hora. Eles ligaram e no primeiro momento minha mãe não acreditou, achou que fosse trote. Ela abriu o portão, eu saí do carro nua, entrei em casa nua e os policiais apenas falaram que agora eu deveria procurar uma delegacia para registrar queixa", disse a contadora.

Horas de espera e descaso

Dentro de casa, G.R. e a mãe ficaram muito nervosas com tudo o que havia acontecido, até que a contadora lembrou que também havia sido roubada e que todo seu salário estava na conta bancária. Ela conseguiu acessar pelo computador, fez a transferência, até que surgiu a dúvida do que deveria fazer depois disso: ir à delegacia ou ao hospital? O pai da vítima ligou para seu noivo, que é da área da saúde e poderia orientar o que seria melhor. Como ele estava no plantão, não viu as ligações. Foi então que eles decidiram ir até a delegacia. Chegando lá, um homem informou que ela precisava ir até o hospital e só depois voltar à delegacia.

A contadora foi até o Hospital Municipal Albert Schweitzer, onde foi recebida e acolhida pelos profissionais que fizeram seu atendimento. Ela foi medicada, iniciou um tratamento com coquetel antiviral, tomou injeções, passou por ginecologista, psicóloga, assistência social e enfermagem. Após ficar nauseada pelos medicamentos, recebeu remédios para enjoo e levou dois medicamentos para continuar o tratamento em casa.

De volta à delegacia, G.R. falou com um inspetor que, segundo ela, não deu muita bola para o que tinha acontecido: "Foi um atendimento bem frio, desumano. Ele perguntou se eu passava no local todos os dias e falou: 'Dá uma andada por lá, já que é perto da sua casa, fala com os vizinhos pra ver se tem imagens, alguma coisa e traz pra cá, que a gente tenta achar esse cara'. Ele me encaminhou para o IML para passar pelo exame de corpo de delito, e disse que só funciona de segunda a sexta, mas disse para eu dar uma passada lá de qualquer forma, para ver se teria alguém que pudesse me atender", disse a contadora.

Acompanhada do noivo que havia largado o plantão para ajudá-la, eles foram até o IML de Campo Grande, bairro próximo ao local do crime. Chegando lá, a pessoa que estava fazendo o atendimento nem olhou para a vítima, apenas disse: "Aqui não tem isso hoje. Manda ela voltar segunda às 8h". O noivo de G.R. explicou que o caso era grave, que segunda-feira já não teria material para ser colhido e o homem completou: "infelizmente é assim, as regras são essas".

Não satisfeitos com a negativa, a contadora e o companheiro começaram a fazer contatos O casal foi até o IML de Nova Iguaçu, na baixada fluminense, mas por ser de outra jurisdição, se recusaram a fazer o atendimento. Eles ligaram para um amigo que é policial. Ele conseguiu um contato e a pessoa disse para G.R. voltar ao IML que teria um legista para atendê-la. Quando isso aconteceu já era sábado à noite, cerca de 21h.

"A pessoa que estava lá de manhã me atendeu com outra cara quando me viu novamente. O perito e uma auxiliar me atenderam super bem e abriram a sala Lilás [local específico para vítimas de violência contra a mulher]. Mas até chegar esse momento, foi um período de estresse muito grande", disse G.R..

Ela e o noivo abriram uma reclamação na corregedoria de polícia por causa da conduta dos PMs. Dias depois do crime ela foi chamada para voltar à delegacia, mas dessa vez conversou com uma delegada, que pediu desculpas pelo atendimento anterior, por não ter nenhuma mulher para recebê-la. A delegada quis acrescentar mais informações ao depoimento e pediu para que ela fizesse um reconhecimento de um suspeito que foi confirmado pela vítima, mas agora, para efetuar a prisão preventiva, eles dependem dos resultados de alguns exames, como o espermograma.

Além de receber o apoio dos dois filhos de 7 e 15 anos, dos pais e do noivo, a contadora pode contar com a ajuda da empresa onde trabalha, que decidiu afastá-la com uma licença remunerada por conta dos danos psicológicos e está cuidado de toda a parte jurídica, inclusive já estão cobrando os danos sofridos ao estado.

'Sinto medo de sair'

"Eu estou muito abalada, sinto muito medo de sair, não vou sozinha nem na esquina da minha casa. Fui na rua com a minha mãe esses dias para resolver problemas de banco e comprar um novo aparelho, já que fui roubada. Passei muito mal na rua, percebi que precisava de tratamento. Comecei a terapia e estou tentando buscar coisas para me distrair sem sair de casa. Não consigo dormir bem, é um pesadelo para dormir e não tenho apetite, minha fome sumiu. Me sinto uma morta com o coração batendo, é uma ferida, uma dor na alma que não tem remédio, palavra, nada que passe. Me sinto um lixo. Quanto à pessoa, não consigo sentir nada por ele, nem pena, nem raiva e nem ódio. Estou focada em melhorar, me reestruturar para voltar à minha rotina. Tenho sonhos para realizar, tenho meus filhos que eu preciso cuidar, dar atenção."

Sem ter condições de se mudar, G.R. teme ter de passar novamente pelo local do crime. Em janeiro a contadora vai passar por uma avaliação para saber se está em condições de voltar para o ambiente de trabalho: "Minha integridade física está conservada, mas minha integridade psicológica e emocional está totalmente destruída. No dia da Consciência Negra, eu como uma mulher preta, recebo esse 'presente' justo nessa data", disse a vítima a Universa.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi publicado, Bangu fica na zona oeste do Rio de Janeiro.