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'Moro com meus dois companheiros em uma família não tradicional'

Juliana Matos, que vive com dois parceiros em família poliamorosa - Arquivo Pessoal
Juliana Matos, que vive com dois parceiros em família poliamorosa Imagem: Arquivo Pessoal

Juliana Matos, em depoimento a Anahi Martinho

Colaboração para Universa

02/09/2021 04h00

Meu nome é Juliana Matos, tenho 33 anos, vivo em uma família não-tradicional. Somos eu, meus dois companheiros, minha irmã, meu cunhado e três crianças, morando na mesma casa.

Conheci o Gustavo no Carnaval de 2005, no Rio. Sou de Realengo, na zona oeste. A gente tinha amigos em comum e me encantei assim que bati os olhos nele. Eu tinha 17 anos e ele, 15.

Ele não foi meu primeiro namorado, mas foi o primeiro por quem realmente me apaixonei. Logo no início do relacionamento, a gente começou a questionar algumas coisas. Éramos muito jovens, e ao mesmo tempo tínhamos a certeza de que queríamos ficar juntos para sempre. Já se passaram 16 anos e essa vontade de estar junto nunca deixou de existir. Ainda quero passar muitos anos com ele.

Na época, ficávamos pensando sobre como seria possível experimentar a vida, viver todas as experiências, conhecer pessoas.

Gustavo, Juliana, Thiago, Kevem e Maíra - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Juliana, os dois companheiros, a irmã e o cunhado
Imagem: Arquivo Pessoal

Quando a gente encontra alguém que gosta, que ama, que quer estar junto, o mundo já vem com uma série de pressões. As pessoas crescem dentro do sistema e acreditam que só existe esse modelo, porque nunca ouviram falar de outra coisa.

O Estado, as religiões (pelo menos as predominantes no mundo ocidental), os pais, os tios, os amigos, todo mundo já tem implícito de que o caminho que você vai trilhar é dentro da lógica monogâmica.

Ao mesmo tempo que já éramos muito conectados um com o outro, a gente questionava essa lógica. Mesmo muito apaixonado, a gente se sentia atraído por outras pessoas. Então, isso veio de forma muito natural.

Eu entendi que não existia uma hierarquia de afetos, como se o afeto que eu tinha pelo Gustavo fosse o ápice dos afetos que eu podia ter na vida. Apesar do sentimento de paixão profunda, eu percebi que amo muitas pessoas. Amo meus amigos, amo minha família, amo tanta gente e cada um de uma forma diferente.

Ao perceber que ele enxergava as coisas de forma parecida comigo, a gente começou a ler e estudar sobre isso. Nos primeiros anos de faculdade, começamos a ter algumas poucas experiências, mas sempre juntos. Saíamos com outras pessoas, mas só de forma sexual, ainda não afetiva. Essa desconstrução não foi completa de uma hora para a outra. A gente ainda não vislumbrava a possibilidade de se envolver afetivamente com outras pessoas.

Estávamos juntos havia sete anos quando eu engravidei da minha primeira filha, a Olga. Eu tinha 24 anos e cursava museologia na UniRio. Ele fazia engenharia da computação na UFRJ e trabalhava como trainee. No fim das contas, nenhum de nós dois concluiu essas graduações.

A gente tinha planos de ter filhos, mas antes queríamos concluir a graduação, sair das casas dos nossos pais e, de repente, foi uma correria, tivemos que acelerar tudo. Ele seguiu sendo trainee e essa era nossa única fonte de renda. Eu fazia estágio na época, mas tive que largar. Infelizmente, no Brasil, não temos uma lei trabalhista que promova direitos para a mulher que tem filhos.

Foi então que minha irmã aproveitou o bonde para sair da casa da minha mãe. E aí a gente foi morar juntos, eu, o Gustavo, minha irmã Maíra e o namorado dela, o Thiago. Isso foi um diferencial, essencial para a gente conseguir tocar nossa vida adiante. Não teríamos conseguido se vivêssemos nesse padrão de família nuclear tradicional, só pai, mãe e filhos —no qual o pai tem que sustentar tudo e a mãe tem que cuidar da casa e das crianças. A gente conseguiu uma divisão de tarefas e gastos que fez toda a diferença.

Juliana e um dos parceiros, Kevem - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Juliana e um dos parceiros, Kevem
Imagem: Arquivo Pessoal

Eu e minha irmã sempre fomos muito próximas. Ela já sabia que nosso relacionamento era aberto e, quando ela conheceu meu cunhado, eles também já iniciaram a relação deles de forma não-monogâmica.

Quando a Olga tinha 1 ano e 10 meses, eu engravidei de novo. E quando eu estava no quarto mês de gestação, minha irmã engravidou. Hoje temos a Olga, de 9 anos, a Liz, de 7, e o Noah, meu sobrinho, de 6.

A monogamia não passa só pelos relacionamentos, mas por toda uma ideia política. Eu nunca acreditei na família nuclear como algo possível, principalmente para mim e minha irmã, que somos mulheres. É visível o quanto a carga de trabalho fica em cima da mulher.

A maternidade é muito exaustiva e solitária para a mulher, porque o sistema é machista e cria isso. O sistema entende que o homem não precisa ter participação. Então, morar todo mundo junto nesse início foi muito revolucionário, fundamental para retomar nossa vida social, compartilhar os cuidados com as crianças e voltar a se entender como mulher e como pessoa, não somente como mãe.

Depois de três anos, o Gustavo arrumou uma oportunidade de emprego em Porto Alegre e fomos para lá, pela primeira vez morando longe da minha irmã, cunhado e sobrinho. Por conta de amigas que eu tinha no Rio, que compartilhavam os mesmos valores, pude fazer também uma rede de amigas bem importante lá. Nos dávamos suporte com as crianças e inclusive voltei ao mercado de trabalho, como produtora cultural.

Nesta fase, eu e o Gustavo nos aprofundamos nas discussões de não-monogamia de forma teórica e também em como seria viável nos entender não só como casal, como família, mas individualmente. Não teria como agregar pessoas que não estivessem de acordo com nossa realidade. Teria que ser alguém que ficasse à vontade com um passeio em família, por exemplo.

Em dezembro de 2018, o Gustavo foi transferido novamente e nos mudamos para São Paulo. Um mês depois, conheci o Kevem numa festa da empresa dele.

O Kevem nunca tinha tido uma relação não-monogâmica —eu sempre deixei claro que ele não seria uma pessoa extra, que não existe essa hierarquia entre os afetos. A ideia não é ter um parceiro principal e outros secundários. A ideia é que seja horizontal. Não posso valorizar um afeto mais que o outro.

No início, foi um desafio para ele entender como se inseriria nessa família. Ele tinha essa sensação de estar invadindo, se intrometendo.

O mundo coloca na nossa cabeça que a família é uma unidade, uma coisa sagrada. E não é uma unidade, é uma família composta por indivíduos e cada um tem sua vida, seus desejos, seus projetos.

Por um desejo de todos nós, meu, do Gustavo, do Kevem e das crianças, decidimos agregá-lo como pessoa da família. Levei ele ao Rio para conhecer minha família, minha mãe reagiu bem, meu padrasto já foi um pouco mais conservador. Mas sempre tive sorte com isso, minha família respeita muito minhas decisões.

Durante a pandemia, minha irmã e meu cunhado decidiram deixar o Rio e voltar a morar com a gente em São Paulo. Está sendo muito importante para o Noah e para as meninas.

Juliana e um dos parceiros, Gustavo, com quem está há 16 anos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Juliana e um dos parceiros, Gustavo, com quem está há 16 anos
Imagem: Arquivo Pessoal

O apartamento que a gente mora é grande, é na verdade uma junção de dois apartamentos. Tem quatro quartos, um do Kevem, um do Gustavo, um da minha irmã e cunhado, e outro das crianças. Eu me revezo entre um companheiro e outro. Tento intercalar as noites, mas não é uma regra. Tem dias que um precisa dormir cedo, e vice-versa.

Minhas roupas e minhas coisas ficam divididas entre os dois quartos. Gostaria de ter um quarto só meu, mas por enquanto é o que dá para ter. Também fazemos várias atividades juntos, os cinco, com as crianças.

Nos entendemos como uma família não-tradicional. Isso não vem de forma natural, tipo "vamos deixar acontecer e ver no que dá". Tem muita conversa, muito diálogo. A gente senta e conversa sobre a agenda de cada um, como cada um precisa organizar seu trabalho, estudos, projetos, tempo com as crianças. Cuidar um do outro é o que rege nossa convivência.

De manhã, o Gustavo fica com as crianças, à tarde ficamos eu e o Thiago. O Kevem e minha irmã estão trabalhando fora no momento. Cada um se adapta para fazer as tarefas da casa e cuidar das crianças.

A ideia de família e de monogamia está muito ligada ao sistema capitalista, são coisas que a gente quer combater.

Esse modelo que temos como padrão parte da ideia de posse, herança, individualismo, que vem junto com o capitalismo. É um sistema que oprime a todos, mas principalmente a mulher.