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Depois de viver situação análoga à escravidão, ela fundou um projeto social

Sandra Santos, fundadora do projeto social Casa Mãe Mulher, que atende familiares de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas - LUCAS LANDAU
Sandra Santos, fundadora do projeto social Casa Mãe Mulher, que atende familiares de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas Imagem: LUCAS LANDAU

Lucas Landau

Colaboração para Universa

08/08/2021 04h00

Sozinha na vida, sem incentivo, mas com muita inteligência e empatia, Sandra Santos, 56 anos, saiu de uma condição análoga à escravidão e fundou um projeto social chamado Casa Mãe Mulher, que atende familiares de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em Belford Roxo, Baixada Fluminense, no DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas, órgão do Estado para adolescentes até 18 anos).

Sandra trabalha no CAI (Centro de Atendimento Integrado), uma das unidades do DEGASE. Ficou sete anos como cozinheira, passou para o almoxarifado e quando foi realocada para a portaria, guardando os pertences das famílias nos dias de visitas, percebeu o sofrimento dessas mulheres.

"Eu via aquelas mulheres esperando para verem seus filhos, irmãos, netos de 6h às 14h, embaixo do sol forte, sem nenhuma assistência, passando mal de fome, com machucados pelo corpo, muitas sem roupas adequadas, passando todo tipo de necessidade". Foi assim, em uma iniciativa de humanizar a situação daquelas mulheres, que ela entendeu que poderia ajudar.

Casa nasceu para dar assistência a mães e esposa de presos

A Casa Mãe Mulher nasceu em 2011, com uma barraca exatamente em frente ao CAI de Belford Roxo, onde era oferecido às mulheres com parentes na unidade um local para sentarem, sombra, café, comida e acesso a um banheiro. A dor da própria trajetória da vida de Sandra fez com que ela se sensibilizasse com as dores e trajetórias de outras mulheres.

Hoje está em uma casa mais estruturada na mesma rua. O imóvel é uma típica casa do subúrbio fluminense, com aspecto de 1970. Tem muro baixo revestido de azulejo amarelo e por cima uma grade vermelha vazada por onde é possível ver a grande varanda com uma mesa no meio, sempre com comida disponível, e duas rodas de conversa, apenas com mulheres.

projeto social Casa Mãe Mulher,  - LUCAS LANDAU - LUCAS LANDAU
Casa fica em frente ao local onde as filas para visita de presos e presta serviços à mães e esposas.
Imagem: LUCAS LANDAU

A ONG de Sandra fica de frente para o local onde as filas para visita se formam todas as quartas e sábados. É possível ler grafitado no muro alto do outro lado da rua: "Se eu pudesse fazer um pedido, desejaria você aqui comigo". A Casa atualmente ajuda 100 famílias e não conta com doadores fixos, Sandra está sempre em busca de doações.

"Hoje eu vejo a Casa madura", comenta Sandra, que conta com a ajuda de aproximadamente 10 voluntários. O projeto social oferece roda de leitura, roda de conversa, apoio emocional e prático para as mães.

"Essas mulheres têm muitos sofrimentos, principalmente autoestima baixa, e a Casa atua para amenizar esses sofrimentos", define. Sandra considera que sua ONG estimula as mães a questionarem suas atitudes e as suas dificuldades, assim como as dos filhos.

"A circunstância é triste mas aproxima as mães de seus filhos, muitas delas só conversam com o filho quando ele vai parar ali", fala apontando para o muro alto com concertina no topo.

De vida análoga à escravidão a fundadora de projeto social, com duas faculdades

Sandra Santos, fundadora do projeto social Casa Mãe Mulher, - LUCAS LANDAU - LUCAS LANDAU
Com apenas 12 anos, Sandra começou a atuar como empregada doméstica em um casarão de uma família rica da cidade. Foram 14 anos sem receber um centavo.
Imagem: LUCAS LANDAU

Antes de aprender a cuidar dos outros, Sandra precisou aprender a sobreviver sozinha. Com cinco anos de idade foi separada da mãe. Saiu de Casimiro de Abreu, onde nasceu, na região dos Lagos, e foi morar na casa de uma tia, em uma comunidade de São Cristóvão, zona norte da capital fluminense. Sua mãe não tinha condições de cuidar dos seis filhos, à época. No total, Sandra teve 11 irmãos (quatro faleceram).

Depois de sete anos com os tios e os primos, foi trabalhar na casa de um desembargador no Engenho Novo, também na zona norte do Rio. Com apenas 12 anos, Sandra começou a atuar como empregada doméstica em um casarão de uma família rica da cidade. Foram 14 anos nesse emprego sem receber um centavo.

"Eu era filha até a copa. Até a copa você é da família, depois você não é mais não", relembra Sandra em entrevista a Universa, na Casa Mãe Mulher.

"Eu tinha vida de escrava. Não pagavam salário, era em troca de comida, de um teto para morar e das roupas velhas da filha", conta. Em tom de indignação, ela recorda os dias em que a antiga patroa a fazia trabalhar de oito horas da manhã até às três da madrugada, para dificultar seus estudos. "Eu não podia ser melhor do que os filhos dela na escola".

Sandra afirma que tinha tudo para ser uma mulher amarga. "Não morei com a minha mãe, sempre morei na casa dos outros, sempre colocaram a minha autoestima lá embaixo, mas eu resolvi mudar a minha vida e dar a volta por cima". Ela lembra que aos 15 anos, já pensava em ser mãe: "vou estudar para que meus filhos não passem por isso".

A consciência da importância de se agarrar nos livros e nos ensinamentos veio através das professoras da escola, que levavam para a turma histórias de superação e motivaram Sandra a ter um destino diferente da sua realidade à época.

Cursou duas faculdades (teologia e serviço social, ambas em instituições privadas de Nova Iguaçu pagas por ela mesma) e cursa pelos próximos dois anos uma formação em psicanálise. Em breve será teóloga, assistente social e psicanalista. Sandra comemora a sua melhor fase: "Tô me amando".

Ela conta que foi mandada embora da casa do desembargador sem nada no bolso aos 26 anos de idade. Nessa época, começou um relacionamento com o homem que hoje é o ex-marido e foi viver na casa dele, em Belford Roxo, onde mora e trabalha até hoje.

Com 29 anos, teve seu primeiro filho, Rafael. Aos 35, veio Raíssa e aos 39, Raiane. A naturalidade e a força com que Sandra fala sobre seu passado são igualmente intensas à alegria de quando ela fala sobre seus filhos. "Meus filhos foram meu estímulo", ela se emociona e a voz embarga.

Em 1994, com 30 anos, Sandra se inscreveu em um concurso público para trabalhar na área da cozinha. Não sabia onde trabalharia e foi enviada para o DEGASE na Ilha do Governador, zona Norte do Rio. Ela não sabia cozinhar em larga escala, só queria saber como se sairia no concurso. E passou. Teve que aprender a cozinhar em grande quantidade com os novos colegas.

Ficou na cozinha do setor masculino por cerca de 10 anos, até o serviço ser terceirizado. Se lembra de dar leite quente para os jovens depois de uma rebelião. Era chamada por eles de "tia pretinha" e a comparavam com suas mães. O cuidado com o outro fica evidente no olhar e na comida de Sandra.

Naturalmente, está cheia de planos para o futuro. Além de continuar no CAI, pretende fazer uma pós-graduação para se especializar em comunidades e direitos humanos e está na luta para tirar o CNPJ da Casa. "Quero que a Casa Mãe Mulher funcione de terça a sábado, com capacitação, alfabetização, curso de culinária etc".

E quer morar no Leblon. "Quando trabalhava na casa da família, eu sonhava em morar no Leblon e ainda sonho, nem que seja velhinha de bengala. Sonhar é permitido, né? E a gente corre para realizar".