Topo

Autora sucesso nos EUA: "Ser da comunidade LGBT não é sinônimo de virtude"

A escritora Carmen Maria Machado é autora do livro "Na Casa dos Sonhos" (Cia das Letras) - Divulgação
A escritora Carmen Maria Machado é autora do livro "Na Casa dos Sonhos" (Cia das Letras) Imagem: Divulgação

Caio Delcolli

Colaboração para Universa

05/06/2021 04h00

Carmen Maria Machado está sorridente. A escritora americana de 34 anos está empolgada por já ter tomado a vacina contra a covid-19 e poder sair à rua com a mulher, com quem mora na Filadélfia, e por Donald Trump não ter sido reeleito presidente dos Estados Unidos. No entanto, ela não está exatamente feliz. Na verdade, depois de um ano isolada em casa, Machado diz estar cínica.

"As pessoas que têm poder não querem dividi-lo, o sistema político que temos não funciona, não nos importamos uns com os outros como deveríamos, não fazemos escolhas sustentáveis para que futuras gerações possam sobreviver no planeta? Tipo, sei lá, queima tudo logo!", ri.

A escritora, que já veio ao Brasil para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2019 divulgar seu primeiro livro, a coleção de contos de fantasia feminista "O Corpo Dela e Outras Farras" (ed. Planeta), agora lança "Na Casa dos Sonhos" (ed. Cia das Letras).

Em "Na Casa dos Sonhos", Machado aborda a experiência traumática que foi ter vivido um relacionamento abusivo com uma ex-namorada. A estrutura do livro é no mínimo peculiar. Trata-se de um trabalho experimental em que a autora, por meio de uma coleção de textos, perpassa a memória literária, a política, a cultura pop e a história cultural, entre outros temas, para articular a experiência. Machado teve de criar um novo formato para conseguir expressar algo tão delicado.

O livro traz relatos de violência e manipulação psicológica e também aborda o "silêncio do arquivo", termo que designa o que não se encontra em registros históricos e culturais.

capa na casa dos sonhos - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Na Casa dos Sonhos" (Cia das Letras), da escritora Carmen Maria Machado
Imagem: Divulgação

No caso dos relacionamentos abusivos dentro do meio LGBTQIA+ (Lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, queers, intersexuais, assexuais e demais existências de gêneros e sexualidades), a autora, contribui para que essa realidade seja ainda mais velada que os casos de abuso em relacionamentos heterossexuais, visto que o debate em torno da violência doméstica ainda é muito recente. Entretanto, no que depender da autora, não haverá mais silêncio.

Machado falou a Universa a respeito de como foi escrever sobre os abusos, a relação com o trauma, o que há de político na violência dentro do meio "queer" e como a cultura — tanto no sentido amplo da palavra quanto no de arte — reflete nossas visões de mundo, entre outros assuntos. Confira a seguir a entrevista, que foi editada e condensada a fim de clareza.

UNIVERSA - Como foi escrever sobre uma experiência tão íntima e dolorosa? Deve ter sido difícil relembrar dos abusos de que você foi vítima e torná-los públicos em um livro.

Carmen Maria Machado - Foi extremamente difícil. Hoje mesmo eu estava conversando com outra pessoa e eu disse a ela que, se eu pudesse voltar no tempo e fazer novamente a escolha de escrever o livro, escolheria não escrevê-lo.

As pessoas me perguntam se eu me sinto melhor depois de escrevê-lo, mas sinto que me "retraumatizei" no processo.

Antes da pandemia, eu estava divulgando o livro e me lembro de estar em uma livraria com algumas pessoas e dizer a elas: "Que estranho estar aqui falando sobre a pior coisa que já aconteceu comigo com pessoas que não me conhecem". É difícil. Agora estou fazendo a divulgação internacional e meio que não vejo a hora disso terminar para eu não falar mais a respeito. É demais para mim. Tenho outras coisas para tocar adiante.

Relembrar aqueles acontecimentos e escrever sobre eles foi como um "exorcismo", digamos assim?

Pois é, "exorcismo" é uma boa palavra para definir o processo. Eu o tenho descrito como "expelir uma pedra no rim", como se fosse algo em meu corpo que eu tive de colocar para fora. Não me sinto exatamente bem, mas me sinto aliviada, porque tem outros livros que eu quero escrever e esse estava no meu caminho. Eu precisava me desvencilhar disso. Não me sinto bem, mas sinto que fiz algo que me trouxe alguma satisfação.

Como você está hoje? É possível superar o abuso?

Isso não é algo linear. Não é como se um dia você acordasse e dissesse "ah, agora eu superei!". Não é simples. É um processo contínuo em que alguns dias são melhores que outros. Às vezes, eu não penso na minha ex por dias, semanas e até meses, mas aí algo acontece e eu fico triste. A cura não é linear. Dizem que, se você estiver passando pelo diabo, continue a passar, vá adiante e não fique parado, mas a parte difícil disso é que o inferno não tem mapa ou guia [risos]. Você talvez tenha um guia, mas não há solução correta, não tem essa de ir do ponto A ao B. Escrever sobre trauma é traumático. Há quem diga que deve ser ótimo colocar isso para fora, mas não, foi péssimo [risos].

carmen - Mathilde Missioneiro/Folhapress - Mathilde Missioneiro/Folhapress
Carmen Maria Machado (à esq.) esteve na Flip (Festa Literária de Paraty), em 2019; ela participou de debate com a cearense Jarid Arraes
Imagem: Mathilde Missioneiro/Folhapress

Quais são as reações mais frequentes dos leitores que abordam você para conversar sobre o livro?

Eu recebo tantas mensagens! Pelo Instagram, pelo Twitter, por e-mail. Eu recebo umas dez mensagens por semana ou mais, sem contar as que vêm em eventos que faço. Acho que o livro tem impactado as pessoas de diferentes maneiras, gays ou não. Uma vez, uma pessoa me disse que o livro a ajudou muito a lidar com o trauma do relacionamento abusivo com a própria mãe. Acho que o livro propõe às pessoas uma maneira diferente de ver o tema. Eu recebo muitas mensagens de pessoas respondendo à leitura, o que é ótimo, é uma das razões pelas quais eu escrevi "Na Casa dos Sonhos".

Seu livro fala também de algo que parece ser óbvio: causa política não define caráter e perfil psicológico e pessoas LGBTQIA+, como todas, não são só boas ou só ruins. A sociedade está entendendo isso?

Quando você está lutando por direitos, por ser reconhecido legalmente e como digno de respeito, há o desejo de criar uma fachada que inspire aceitabilidade e aprovação nos outros. Acho que, nos EUA, os gays já passaram por isso. Quando as coisas que relato no livro aconteceram, a gente estava debatendo o casamento igualitário por aqui, e hoje, isso já está resolvido. Agora a gente se dedica a outros assuntos, como a transfobia. Vários estados têm aprovado leis transfóbicas horríveis [até abril deste ano, mais de cem projetos de lei que restringem direitos e liberdades de indivíduos transgênero foram votados em mais de 33 estados, segundo a CNN].

A sociedade tem muitas maneiras de ver os LGBTQIA+, então, acho importante dizer que, quando possível, você pode articular que não somos um monólito.

Pertencer a essa comunidade não é sinônimo de virtude — é algo neutro em termos de valores. Portanto, há quem faça o bem e há quem faça o mal, o que soa óbvio, mas acredito que a retórica acerca das pessoas queer é moldada pela necessidade política.

Quando elas estão em pânico, dizem "precisamos mostrar ao mundo que somos boas pessoas. Não podemos lavar nossa roupa suja em público. Não podemos dizer às pessoas que coisas ruins acontecem aqui dentro. Precisamos mostrar uma fachada bonita".No entanto, isso é injusto, sabe? Porque héteros não precisam fazer isso, não precisam provar que são dignos de se casarem — eles apenas se casam. É um ciclo dos direitos civis e dos direitos humanos. Você luta para se mostrar como alguém com uma fachada de virtuosismo e, com esperança, talvez tenha sucesso nisso; depois, você talvez consiga falar de maneira mais ampla sobre o que significa ser quem você é. Acho que isso é parte do que está acontecendo hoje. Você precisa falar a sua verdade, ser honesto e há quem diga o oposto, mas não podemos fazer nada a respeito disso.

Em "Na Casa dos Sonhos" você cita de "Star Trek" a vilões de filmes da Disney. Acredita que a cultura pop pode ajudar a consolidar no imaginário social o que é real ou não em nossa vida em sociedade?

A cultura pop é tipo nosso id enquanto sociedade, é como a representação da nossa natureza mais primitiva. E eu acho que a cultura pop é uma língua que temos em comum e que consegue sintetizar como as pessoas pensam sobre as coisas. Por exemplo: "ah, você ama 'O Rei Leão'. Você não acha interessante que o vilão [Scar] seja gritantemente gay?". Acho que é uma língua a que as pessoas podem recorrer para opinar, um dispositivo retórico, uma maneira de mostrar ao outro que você pensa diferente dele. A arte propõe que a gente veja as coisas pela ótica de outra pessoa, o artista. É uma maneira de alcançar pessoas.

A forma do seu livro é única, e a crítica literária o tem elogiado por isso. Você teve que criar uma forma para conseguir expressar seus sentimentos a respeito dos abusos?

A forma do romance linear não estava funcionando para mim. Tudo que eu escrevia era ruim. Eu pensava "isso é terrível, quem vai querer ler isso?". Para mim, pensar na literatura pelos aspectos de forma e gênero dela é importante para se descobrir o que os leitores esperam das histórias e como subverter as expectativas deles. E isso é mais interessante para mim, como uma escritora, do que contar histórias linearmente. A escrita que mais mexe comigo é aquela que tira um pouco de todas as disciplinas e ideias e permite-se ser fragmentada e estranha. Isso é semelhante ao que a experiência do trauma tem de essencial. Eu queria escrever um livro que fizesse algo assim. Uma vez que eu descobri que forma "Na Casa dos Sonhos" deveria ter, ele simplesmente saiu de mim, tudo passou a fazer sentido.

Seu primeiro livro, "O Corpo Dela e Outras Farras" também mexe nos mecanismos narrativos mas sempre com um olhar feminista.

Acho que os gêneros literários são conjuntos de expectativas que nós fazemos das histórias, e histórias nos formam como pessoas e a nossa visão de mundo também. A maneira que eu tenho de desafiar como vemos o mundo é desafiando os gêneros das histórias que contamos sobre nós mesmos. Há algo provocativo e interessante em olhar criticamente para uma obra e perguntar "o que isso significa?", "o que significa isso aqui no conto de fadas?", "por que histórias de terror podem conter aquilo?", "por que há esse tipo de política em histórias de mistério com assassinato?". Eu gosto de examinar o que está sob isso. Algumas pessoas veem isso tudo como valor nominal, mas eu questiono. Meu pai é engenheiro e, como ele, eu gosto de abrir, desmontar, analisar as engrenagens, as baterias, os fios, quero ver como as coisas funcionam.

Mas você não está apenas escrevendo, está publicando o que escreve, e isso tem consequências. A arte frequentemente tem impacto na cultura em que vivemos. Você está tentando deixar sua marca nela?

Sim, eu espero estar deixando minha marca [risos]. Se você tiver bastante sorte, verá a si mesma tendo um impacto enquanto ainda está viva. Entretanto, não tem como saber, não sei o que vai acontecer. Talvez daqui a cem anos as pessoas não estejam lendo meu trabalho. Ou talvez estejam. Eu não teria como saber, porque já vou estar morta [risos]. Eu escrevo o que quero, encontro os leitores em eventos, vivo a vida que desejo viver e isso tudo é o máximo que posso pedir. Acho que não cabe a mim refletir sobre meu papel na cultura.

Em "Na Casa dos Sonhos", você fala sobre o milenar "silêncio do arquivo", mas agora, por sua causa, ele não está tão silencioso. É curioso como a cultura se comporta, não acha?

Pois é. Eu me lembro de ter feito um evento e uma lésbica mais velha disse a mim: "eu sinto que, a cada dez anos, a gente tenta quebrar o silêncio da violência nos relacionamentos queer. E, a cada dez anos, sinto que vamos conseguir fazê-lo, mas falhamos, e dez anos depois, acontece o mesmo". Isso me entristeceu, porque eu não queria que essa história se repetisse. No entanto, sinto que fiz minha partezinha. Nenhum escritor e nenhum artista pode significar tudo para todo mundo.

É engraçado como você pode olhar, hoje em dia, uma lista de best-sellers de cem anos atrás e, vez ou outra, encontrar nela um título famoso e se perguntar "qual é esse aqui? Nunca tinha ouvido falar". A arte é estranha e a cultura se move e se forma de maneira estranha. E, francamente, nós vamos explodir nosso planeta muito antes de chegarmos a um futuro muito distante [risos]. Acho que estamos todos amaldiçoados. Eu me importo com isso, mas não de verdade, porque estarei morta [risos]. Eu quero escrever livros, pagar as contas, dar aulas, conhecer gente nova, viajar? É isso que importa de verdade para mim. Eu sou apenas uma pessoa com um conjunto de determinadas experiências que teve sorte o suficiente para poder contar sua história, alcançar várias pessoas e talvez ter um impacto cultural. Mas agora eu espero que haja espaço para outras pessoas virem depois de mim.