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"Tenho má-formação, me olham com medo e pena, mas não ligo, amo meu rosto"

A nutricionista Daniela Heberle tem 24 anos e quase 100 mil seguidores no Instagram, plataforma em que fala sobre autoestima e empoderamento feminino - Arquivo pessoal
A nutricionista Daniela Heberle tem 24 anos e quase 100 mil seguidores no Instagram, plataforma em que fala sobre autoestima e empoderamento feminino Imagem: Arquivo pessoal

Daniela Heberle em depoimento para Júlia Flores

De Universa

27/05/2021 04h00

"Desde criança, lido com críticas ao meu rosto. Nasci com um hemangioma na face — essa mancha vermelha que você consegue ver nas fotos e vídeos. Ela, às vezes, fica mais vermelha ou mais roxa, dependendo da temperatura ambiente, do quão quente meu corpo está e dos hormônios. Não é genético, se desenvolve por conta de uma falha no crescimento do feto. Por ser no rosto, é mais difícil de ser tratada e a remoção é complicada, porque eu posso ter um quadro severo de perda de sangue.

Além disso, a partir dos nove anos comecei a ter 'tumores' no nariz e no lábio. São más-formações arteriovenosas (MAV) das carótidas que surgiram na puberdade por questões hormonais. Os médicos dizem que são benignos e que não vou morrer por causa disso, a não ser que eu tenha uma hemorragia.

Por causa do tumor, eu passei por diversos procedimentos médicos, como a embolização, um tratamento paliativo para ajudar o sangue a circular na região. Ao todo, fiz mais de 20 cirurgias (não lembro o número exato), a maioria foi por uma razão funcional. As plásticas no lábio (de 4 a 5) e no nariz (3) foram para conseguir melhorar a dilatação dos vasos.

Do tempo que passei em hospital, levo a experiência de que, se as pessoas soubessem como é o pós-operatório de uma cirurgia plástica, elas não se submeteriam a isso por pura estética

Não tenho sintomas físicos por causa da MAV, não tenho dor, respiro direito, falo bem. A única coisa que a doença me impede é de tomar sol na cabeça, pois pode provocar hemorragia nasal. Posso ir para a praia, fazer passeios (inclusive, eu amo a praia, meu sonho é morar lá um dia). Só preciso ficar debaixo do guarda-sol, usar boné... Cuidados que todos deveriam ter.

"Me chamavam de nariz de batata"

Daniela conta que, quando criança, sofria bullying de colegas: "Nariz de batata" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Daniela conta que, quando criança, sofria bullying de colegas: "Nariz de batata"
Imagem: Arquivo pessoal

Minha infância foi bem complicada. E sabe o que é mais engraçado? Eu nunca me reconheci como alguém diferente, porque meus pais nunca me trataram assim, sempre me trataram como uma pessoa 'normal'.

O ano em que mais sofri bullying foi quando estava na terceira série. As crianças não queriam ser minhas amigas, não queriam chegar perto de mim e eu não tinha com quem fazer os trabalhinhos da escola. Elas não me evitavam por medo, mas viam que o resto dos colegas não se aproximavam e me deixavam excluída. Eu nunca tive facilidade para fazer amizades.

Quando o tumor começou a crescer, elas criaram teorias sobre o que teria acontecido comigo: falavam que eu tinha nariz de batata, que eu tinha queimado o rosto no fogão, etc. Coisas difíceis para quem está ouvindo.

Até hoje não consigo superar algumas mágoas da infância e levo isso para a terapia. Por que as pessoas não pensam antes de falar? De vez em quando, estou em uma loja e tem quem fique 'Meu Deus, o que aconteceu contigo? Tu caiu de moto? Tua cirurgia deu errado?' Sou grossa na resposta, porque não gosto dessa abordagem.

Quando me deparo com pessoas que tem alguma doença, eu não quero saber o que aconteceu, para mim não importa. É uma pessoa e ponto. Um ser humano

Outra lembrança ruim da infância foi quando comecei a passar por cirurgias. Eu odiava, pois meus coleguinhas ficavam na expectativa de que eu voltaria curada, e eu, mesmo sabendo que nunca me curaria, também criava esperanças. Passar por operações é algo traumático, são procedimentos invasivos em que você fica nua, veste um avental horroroso, dá o braço para alguém furar, tem que fazer anestesia geral. Não entendo como podem se submeter a isso por estética.

"Sempre amei a minha mancha e nunca tentei escondê-la nem com maquiagem", diz Daniela - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Sempre amei a minha mancha e nunca tentei escondê-la nem com maquiagem", diz Daniela
Imagem: Arquivo pessoal

A adolescência também foi outro período difícil, ficava me comparando fisicamente com minhas amigas. O meu corpo não é parecido com o da mulher brasileira, não tenho quadril, nem busto. Então olhava para o corpo das modelos e pensava: 'Poxa, posso ficar parecida com elas'. Comecei a fazer várias dietas a partir dos 15, 16 anos para tentar emagrecer.

Como eu não tinha um rosto padrão, eu tentava ter um corpo padrão. Era algo do meu inconsciente, como se eu precisasse compensar

Nesse período, a minha síndrome já estava mais controlada, então eu saía bastante, tinha amigos, bebia, levava uma vida normal. Tive namorado. Fiquei com pessoas. Inclusive, em festas nunca fui abordada por homens de um jeito invasivo, até porque quem não gosta do que vê nem chega perto, mas na internet já. Uma vez entrei no Tinder e a primeira mensagem que recebi foi: 'Nossa, me apaixonei pelo seu nariz'. Até deletei o aplicativo depois disso.

Recebo olhares de desgosto constantemente, olhar de pena, olhar de 'meu Deus, como ela deixou chegar nesse ponto'. Mas nenhum homem chegou em mim (tentando ficar comigo) me abordando dessa forma

Decidi ser nutricionista justamente porque eu vivia de dieta e conhecia bastante sobre comida. Fiz biomedicina por um ano, e depois mudei de curso. Hoje, aos 24 anos, tenho um perfil no Instagram com quase 100 mil seguidores para falar sobre alimentação consciente e autoestima feminina.

Sei que existe uma cobrança excessiva em cima do corpo da mulher, para que ela alcance um ideal de beleza baseado em tratamentos estéticos, em dietas restritivas. Como nutricionista, não preciso seguir esse padrão, mas preciso me alimentar bem, tomar água, comer frutas e ensinar o outro a ser saudável.

"Essa sou eu"

Não foi uma decisão fácil decidir que eu me tornaria uma 'blogueirinha', porque a partir dali viriam as críticas, as perguntas, curiosidades, mas eu pensei também no meu sucesso profissional.

Decidi começar a terapia para enfrentar esses medos, para aprender a lidar com as perguntas e ainda assim não me sinto confortável de responde-las a todo momento

O vídeo com mais visualizações (cerca de 1 milhão de views) e curtidas do meu Instagram é o que conto da minha doença. Detesto lidar com comentários de pena, haters e de gente orando por mim, o que acontece bastante.

As pessoas acham que, pelo tamanho do meu hemangioma, eu nunca tratei ele. E mesmo assim: caso eu nunca tivesse tratado, essa seria uma escolha minha. Quem tem esse problema, sabe que o tratamento não é fácil. Não é só tomar uma medicação e ficar bem. Acham que pode ser resolvido com uma plástica, mas é difícil, tem um pós-operatório complicado. Ninguém vê isso.

Sou feminista e só trabalho com pacientes mulheres justamente para empoderar outras pessoas, fazer com que elas se libertem do peso que é olhar a balança e se frustrar com o próprio corpo

Daniela e o namorado Samuel estão juntos há 4 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Daniela e o namorado Samuel estão juntos há 4 anos
Imagem: Arquivo pessoal

No campo amoroso tudo está certo. Namoro o Samuel há 4 anos. Ele é meu companheiro de vida. Quanto aos amigos, não gosto de relações baseadas no coleguismo. Colegas não estão interessados em parar a vida para te ajudar e eu aprendi isso na adolescência — quando passava por um procedimento cirúrgico e nenhum amigo deixava de ir na festa para me fazer companhia.

Sempre tive mais para mostrar do que o meu rosto. Dizem que quem me conhece não consegue sair de perto de mim, até porque sou uma pessoa que cativa

No momento, faço laser terapia para diminuir o crescimento dos vasos sanguíneos. Algumas pessoas fazem esse procedimento para clarear o hemangioma, mas não é o meu caso, porque eu gosto muito da minha mancha. Se eu tivesse só ela, seria muito feliz. Hoje o que impacta a minha qualidade de vida é o tumor.

Se você perguntar como eu consigo amar a minha pele, vou te responder: do mesmo jeito que você se olha no espelho, que você se relaciona com a sua pele e que gosta da pele do teu rosto. É normal. Alguns momentos da minha vida eu questionei a minha aparência, até pela pressão estética da sociedade. Só que atualmente eu gosto de quem eu sou, não uso corretivo, não passo base. Quero que as pessoas vejam que minha mancha está ali, que ela faz parte de mim e não quero escondê-la.

Essa sou eu, não tem como eu me esconder."