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Menina conta como revelou abuso do padrasto à tia e avó: "Pessoas certas"

A cada 2 h, Brasil recebe uma denúncia de estupro de meninas até 14 anos - iStock
A cada 2 h, Brasil recebe uma denúncia de estupro de meninas até 14 anos Imagem: iStock

Luiza Souto

De Universa

19/05/2021 04h00

Nicole tinha apenas cinco anos quando relatou à tia e à avó materna que o padrasto a beijava na boca "e que quando chegava da escola e a mãe não estava presente, ele passava o 'pipi' pelo seu corpo'". Hoje, aos 13, cursando o oitavo ano, ela conta a Universa, ao lado da tia, sobre como superou seus traumas e como é a relação com a mãe, que até hoje não acredita numa linha que a filha única conta.

"Minha relação com ela não é de mãe e filha. Eu sinto que ela é mãe, me pariu. Só. Mas não tem aquele amor porque sei o que ela fez. Consegui perdoar 50% a minha mãe", diz Nicole, que por ser menor de idade terá o nome de toda sua família alterado.

A mãe de Nicole conheceu uma pessoa durante viagem a São Sebastião, litoral Norte de São Paulo, em 2012, e quatro meses depois casou-se com ele. O homem tinha passagem pela polícia por furto e era usuário de drogas. Por isso sua tia, Esther, que é irmã de sua mãe, a alertou sobre os perigos que ela e Nicole poderiam correr. Mas foi ignorada.

"Ele beija na minha boca e mexe nas minhas partes íntimas"

Foram Esther e sua irmã que sempre cuidaram de Nicole na casa delas, na Região Metropolitana de São Paulo, enquanto a mãe da menina trabalhava. Quando a sobrinha foi embora para São Sebastião, a tia, que é assistente social, deu à menina uma boneca com seu número de telefone anotado no vestido do brinquedo, caso acontecesse qualquer coisa, mas ele sumiu, conta Nicole.

"Eu e minha irmã começamos também a observar que quando minha sobrinha nos visitava, não queria ficar perto da gente, parecia um bichinho acuado. Até que numa visita ela falou que o 'pai' a mandou não falar mal dele, senão ele arrancaria seu dente. A mãe obrigava minha sobrinha a chamá-lo de pai", relembra Esther.

Nesse momento, ela conta, decidiu levar a menina para dar uma volta junto à avó e perguntar o que o homem fazia que ela não gostava:

"Ela disse que ia falar no ouvido da 'vovó', e quando chegou perto, falou: 'ele beija na minha boca e mexe nas minhas partes íntimas'. Fiquei muito apavorada, e na hora a gente decidiu gravá-la contando e fomos até a delegacia e o Conselho Tutelar".

Quando a mãe de Nicole soube o que a menina tinha acabado de fazer, a agrediu, e ameaçou sumir com a criança, além de falar que própria filha estava inventando. Esther e sua mãe acionaram um advogado para lhe tomar a guarda da menina. Assim que conseguiram, pouco mais de um mês após a denúncia, levaram a criança para tratamento psicológico. E foi diante de uma profissional da saúde que Nicole contou ainda mais detalhes dos abusos.

"Não houve conjunção carnal, mas teve muitos atos de violência. Ele levava ela para baixo do chuveiro e fazia algumas coisas. A mãe dela nega até hoje, fala que a gente inventou isso porque como eu não tenho filho eu quis pegar a menina pra mim", diz Esther.

"Ela queria falar"

Nicole não demonstra nenhum acanhamento em falar a sua história. E foi assim desde pequena. A tia conta que depois de tudo foi a menina quem contou para as primas da mesma idade o que lhe havia acontecido. Quem se incomodava eram os adultos.

"Dentro da própria família ela contava, e as mães vinham reclamar dizendo que não podia deixar. Eu respondia que não ia impedi-la de falar porque aquilo fazia parte do tratamento. E ela queria falar. As pessoas têm muito preconceito. A criança tem que ser ensinada sobre essas coisas."

Ela falou para uma criança que mora com o padrasto tomar cuidado com ele. Eu a chamei, expliquei que nem todo padrasto é mau. E também chamei a avó da criança para contar o que aconteceu, que ela não falou por mal, e ela entendeu

Relacionamento com a mãe

A mãe de Nicole ainda manteve o relacionamento com o agressor por um tempo. Hoje, mora em São Paulo com outro companheiro. O ex foi condenado a 14 anos de prisão por estupro de vulnerável, mas é considerado foragido da Justiça. Até os dias de hoje, Nicole nunca mais ficou sozinha com a mãe. Ela diz ter medo:

"Meus primos também não dormem na casa dela. Não acho que ela faria alguma coisa, mas sinto medo dela em si."

Até hoje tento conversar com a minha mãe, mas ela se revolta. Muita coisa ela preferiu esconder e fingir que nada aconteceu. Tenho contato com meu pai, mas muito de vez em quando. Nunca falamos sobre esse assunto

"Casos como o de Henry são um desastre"

Nicole decidiu dar um tempo na terapia em 2019. "Conversei com a psicóloga que queria dar espaço para pessoas que estavam precisando mais do que eu". Hoje, tenta ajudar as amigas com o que aprendeu nas sessões:

"Minhas amigas não passaram pelo que passei, mas a maioria tem depressão. Tenho medo delas se machucarem. Isso nunca aconteceu comigo, mas teve uma época que sentia muita raiva, queria bater na minha tia e na minha avó, e a terapeuta ensinou a descontar em alguma coisa que não fosse contra as pessoas, então pego uma almofada, aperto e respiro quando estou nervosa. E ensino isso a elas também".

Ela chama de desastre casos como o do menino Henry, morto enquanto estava sob os cuidados da mãe, Monique Medeiros, e o padrasto, o vereador afastado Jairinho, no Rio de Janeiro, e ensina uma lição que a livrou de seu predador.

"Sempre tive certeza daquilo que estava acontecendo e pensava que podia contar para a pessoa certa. Não lembro do ato, do que acontecia, mas lembro de pedir ajuda pra minha mãe e ela ignorar. Então sabia que se contasse pra pessoa errada, como uma amiga dela, não estaria aqui. Então contei na hora certa, pras pessoas certas."