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Cadastrar estupradores diminuirá número de crimes? Especialistas divergem

Cadastro vai reunir informações sobre pessoas condenadas por estupro, como aparência física e endereço - Getty Images/iStockphoto
Cadastro vai reunir informações sobre pessoas condenadas por estupro, como aparência física e endereço Imagem: Getty Images/iStockphoto

Camila Brandalise

De Universa

09/10/2020 04h00Atualizada em 09/10/2020 10h20

Com a promessa de diminuir o número de casos de estupro no Brasil, entrou em vigor no último dia 2 de outubro a lei que cria o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro. A exemplo de outros países que já têm um sistema similar, como Estados Unidos, a ideia é reunir, em um mesmo banco de dados, características físicas, impressões digitais, DNA, fotos e endereço de pessoas que já foram punidos por cometerem violência sexual.

O texto da lei tem quatro parágrafos e, além de citar as informações que deverão ser incluídas nos cadastros, diz que uma cooperação entre os governos federal e estaduais vai definir quem terá acesso ao banco de dados e como isso se dará, e explica que os custos para o desenvolvimento, instalação e manutenção virão do Fundo Nacional de Segurança Pública, ligado ao Ministério da Justiça. Não especifica como será feita essa coleta de dados nem a partir de qual instância de condenação a pessoa já terá as informações registradas.

Mas vai funcionar?

A reportagem de Universa conversou com cinco especialistas para saber se o objetivo pode ser, de fato, alcançado.


Cadastro pode ajudar a solucionar casos, mas não há evidência de que reduza crimes

Uma lei similar à criada no Brasil existe nos Estados Unidos desde 1996, mas não há indícios, lá, de que o número de estupros diminuiu por causa da criação do banco de dados. A taxa caiu desde 1990, quando o número era de 41 casos por 100.000 habitantes. No ano passado, era de cerca de 30 estupros para cada 100.000 pessoas, mas se mantém a mesma desde 2008. Além disso, o Departamento de Justiça americano, equivalente ao ministério, publicou, em 2010, um estudo afirmando que "agressores registrados não eram menos propensos a reincidir do que os agressores sexuais não registrados".

O banco de dados americano foi criado a partir das chamadas leis de Megan. O nome foi dado em homenagem a Megan Kanka, uma garota de 7 anos que foi violada e morta em 1994, em Nova Jersey.

Para a delegada Raquel Kobashi Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo, o cadastro, no Brasil, não vai impedir que novos crimes sejam cometidos principalmente porque, na maioria das vezes, a violência é praticada por conhecidos da vítima. "A iniciativa vai ajudar na elucidação dos crimes de estupro de autoria desconhecida, o que é importante, mas esses crimes configuram a minoria das situações", explica, referindo-se ao fato de que a maioria dos crimes não são solucionados porque a pessoa conhecida não é denunciada, e não porque a autoria do crime é desconhecida.

No Brasil, 75,9% dos estupros são cometidos por pessoas que a vítima já conhecia — padrastos, tios, pais, vizinhos ou amigos da família.

A advogada criminalista Ana Bernal, coordenadora do Núcleo de Ciências Criminais da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo), acredita que o cadastro pode ter, sim, um caráter preventivo. "Pode funcionar como uma maneira de intimidar um estuprador habitual, que terá sua condenação e prisão mais rápida", afirma.

Perita criminal do Instituto de Criminalística do estado de São Paulo, Juliana Mancilha Dias trabalha com um banco de material genético de condenados por diversos crimes, entre eles o de estupro, desde 2013. Ela explica que o cadastro de DNA já é uma política nacional e se questiona como isso será incorporado pela nova lei.

"O texto que entrou em vigor ainda está muito simplório, sem regulamentação. Fica difícil dizer se vai ajudar ou não porque falta um detalhamento. Os dados vão ficar acessíveis para todo mundo? Ou só para algumas pessoas? Como vai ser o sistema de consultas? De qualquer maneira, vejo com bons olhos no que diz respeito à possibilidade de resolver mais crimes, mas precisa ser bem utilizado", diz.

A lei não explica como esse acesso será feito, e Ministério da Justiça ainda não se pronunciou sobre os detalhes relacionados ao cadastro. Nos Estados Unidos, por exemplo, o acesso é público e pode ser feito por meio de um site sob domínio do Departamento de Justiça.

Juliana reforça que não há estudo científico publicado que afirme que um cadastro leve à queda dos crimes. "Mas há linhas de pesquisa que argumentam que o indivíduo, ao saber que seu nome e informações pessoais constam em um cadastro, pensaria duas vezes em cometer um estupro novamente, imaginando que poderia ser pego. Porém não há comprovação estatística para essa hipótese."

"Há problemas mais urgentes para serem resolvidos", opina advogada criminal

Para a advogada criminalista Maira Pinheiro, com experiência em casos de estupro, a lei é uma forma de "populismo penal". "Ela joga uma cortina de fumaça sobre o problema e reforça uma crença equivocada de que o estupro, na forma mais comum, é praticado por um desconhecido em um beco escuro, quando sabemos que é o contrário: a maioria é conhecida da vítima", diz.

"Não vejo essa lei aumentando a segurança das vítimas. Há problemas mais urgentes para serem resolvidos, como uma melhor formação de policiais para evitar a revitimização [quando a vítima é indiretamente apontada como culpada pela violência que sofreu] e a ampliação da rede de proteção para as mulheres, como os serviços de apoio psicológico às vítimas."

Maira afirma que os esforços do governo deveriam estar voltados à melhoria do atendimento das vítimas, e não a iniciativas para prender agressores em um cenário de alta taxa de subnotificação -- de acordo com a pesquisa "Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os
dados da Saúde"
, de 2014, 10% dos casos são reportados à polícia
. "Precisaria existir um protocolo unificado, uma iniciativa interministerial, envolvendo as pastas das Mulheres, Saúde e Segurança Pública, para criar um protocolo de atendimento unificado", explica.

"Isso garantiria um atendimento da delegacia, do hospital e da assistência social em um lugar só e criaria um fluxo entre os diferentes serviços para a mulher não ter que ficar peregrinando. Isso, sim, teria um impacto direto sobre a vida das vítimas. A ideia da Casa da Mulher Brasileira era essa, mas em vários lugares acabou virando apenas uma delegacia em um prédio grande", afirma, sobre o programa lançado em 2015 que visava oferecer diferentes tipos de assistência à vítimas de violência em um mesmo local.

Lei viola princípios constitucionais

Diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a advogada criminalista Andrea D'Angelo aponta para outro problema na nova lei. "Não se prevê por quanto tempo a pessoa ficará inserida neste cadastro, impondo ao cidadão uma pena de caráter perpétuo", afirma. "Nesse sentido, há violação do princípio da dignidade, já que a pessoa será reduzida à condição de marginalizada e será estigmatizada pelo restante da vida." Nos EUA, onde existe um banco de dados para autores de violência sexual, o tempo em que as informações dos criminosos ficam expostas varia em relação a cada estado, que tem suas próprias jurisdições. Em alguns deles, o registro permanece no banco inclusive depois que a pessoa morre.