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Bombeira agredida por ex: "Atendia vítimas, não imaginava ser uma delas"

A bombeira Ticiana Vanessa Soares - Arquivo pessoal
A bombeira Ticiana Vanessa Soares Imagem: Arquivo pessoal

Abinoan Santiago

Colaboração para Universa

25/09/2020 04h00

Com cinco anos na carreira militar, a bombeira Ticiana Vanessa Soares, de 35 anos, perdeu as contas de quantas mulheres vítimas de violência doméstica socorreu em ambulâncias, em Macapá, onde vive. Ela só não imaginava que um dia viveria a condição de vítima na mesma situação que atendia nas ocorrências.

Ticiana foi agredida na madrugada de 7 de setembro pelo então namorado, o bacharel em direito Paulo Eduardo Ferreira, de 27 anos. Depois de uma briga, a militar mandou o rapaz embora da casa dela, mas ele retornou minutos depois alegando que havia sido assaltado. Compadecida, ela o deixou entrar.

Segundo a bombeira, Paulo entrou no quarto para pegar o restante de seus pertentes pessoais e a esperou virar de costas para pegá-la pelos cabelos e bater a cabeça dela na parede. Ticiana desmaiou. O barulho causado pelo impacto acordou os três irmãos da vítima que estavam na casa.

Os irmãos de Ticiana mantiveram Paulo no local até a chegada da Polícia Militar, que o conduziu à delegacia. Ela foi levada ao hospital em uma ambulância dos bombeiros.

"Atendia vítimas de violência doméstica e nunca me via nessa situação. Não esperava passar por isso. Foi uma surpresa. Não imaginava que aquela pessoa esperaria eu virar de costas para me agredir", diz. "Se fosse frente a frente, eu tentaria me defender porque pratico artes marciais e sei me defender. Agora assim, com surpresa, não tinha como", diz a bombeira.

Ticiana publicou imagens das agressões que sofreu nas redes sociais e gerou comoção de outras mulheres. "O que tem me dado força são as mensagens de apoio de pessoas de várias partes do Brasil que passam pela mesma situação e que não tiveram forças para denunciar coisas até piores", diz.

Nunca mais saí sozinha

A agressão sofrida por Ticiana foi o ápice de quatro meses de relacionamento conturbado. Agora separada, a bombeira relata que passa por tratamento psicológico e psiquiátrico para conseguir voltar a realizar atividades simples, como sair de casa sozinha.

"É algo terrível. Não tem nem como descrever. Só consigo ficar calma com medicação. Passei por psiquiatra e psicóloga. Converso somente à base de remédios porque o medo vive rondando. Toca o interfone da minha casa e já penso que pode ser ele. Saio de casa apenas com meus irmãos. Nunca mais saí sozinha. Minha vida virou um caos", lamenta.

O casal se conheceu em abril deste ano pelas redes sociais e logo engatou um namoro. Um mês depois, apareceram os primeiros problemas. Ticiana teria descoberto traições do agora ex-companheiro, mas decidiu continuar o relacionamento após sofrer chantagem emocional do suspeito.

"Ele dizia que iria se matar caso a gente terminasse. Acabei me compadecendo e me senti responsável pela vida dele. Tentei me afastar, mas ele aparecia de madrugada na minha casa, tremendo e chorando. Me sentia responsável. Acabou que virou um inferno", diz.

"Vivia presa em um relacionamento e era manipulada psicologicamente. Eu gostava dele, mas não sei se amava. De certo, me sentia responsável pela vida dele. Era manipulada para sempre cuidar dele. Só quem passa por algo assim vai entender."

"Ele poderia ter me matado"

Os problemas entre os dois pioraram três dias antes da agressão, quando Paulo ficou olhando mensagens no celular de Ticiana. Na madrugada de 7 de setembro, ele teria tocado novamente no assunto.

"Quando chegamos em casa, ele pediu para olhar meu telefone. Como passei o dia sendo ofendida, não aguentei mais aquela situação e o mandei embora. Ele foi ao quarto, arrumou as coisas dele, decidiu sair apenas com as roupas, sem nada de valor. Cerca de 15 minutos depois, retornou dizendo que foi assaltado. Estava exaltado. Não sei se realmente foi assaltado. Penso que premeditou para retornar", conta.

Para Universa, a defesa de Paulo sustenta que ele sofreu um assalto, mas não soube explicar o motivo de ainda não ter registrado boletim de ocorrência para investigar o crime e tentar reaver os pertentes levados.

Ticiana diz que a agressão poderia ter tido consequências ainda mais graves. "Com o choque na cabeça, eu poderia ter tido um traumatismo. Tenho consciência do perigo porque é a minha área de trabalho e atendemos casos assim. Ele poderia ter me matado", diz.

Na delegacia, bombeira diz ter sofrido violência institucional

Depois do atendimento médico que resultou em quatro pontos na cabeça e parte do cabelo raspado para fazer os curativos, Ticiana ainda diz ter sofrido o que a defesa dela classifica como violência institucional, aquela praticada por prestadores de serviços públicos.

A militar chegou, ainda com a roupa e os cabelos sujos de sangue, na Delegacia de Investigação de Crimes Contra a Mulher por volta das 8h de 7 de setembro e saiu somente depois das 12h. Ela diz ter sido atendida após o suspeito e que tentaram fazê-la desistir da ocorrência. Os dois aguardaram atendimento no mesmo espaço.

"No depoimento, a delegada a todo tempo tentava me induzir a não registrar [o boletim de ocorrência] porque ele é um rapaz muito jovem, que havia acabado de se graduar em direito e que com isso perderia o direito de prestar o exame da OAB. Me senti totalmente desamparada dentro de um órgão que deveria me dar assistência. Foi totalmente desumano e ainda cheguei a ficar frente a frente com ele na recepção", diz Ticiana.

"Não passou pela minha cabeça desistir. Quero só que ele pague na Justiça, mas principalmente, que pare de fazer essas coisas com as mulheres", diz Ticiana que conseguiu uma medida protetiva para impedir Paulo de se aproximar dela.

Advogado contesta registro do crime

A defesa de Ticiana contesta na Justiça o crime registrado pela Polícia Civil no boletim de ocorrência, que classificou a agressão como lesão corporal no âmbito da Lei Maria da Penha. O advogado que atua no caso, Osny Brito, defende a tentativa de feminicídio. Ele ainda classifica como "absurdo" o valor da fiança de R$ 600 paga pelo bacharel em direito para ser liberado.

"Se quisesse agredir, teria lesionado outras partes do corpo, mas esperou a vítima virar de costas para atingir uma região que, dependendo da pancada, pode matar ou causar outros traumas para o resto da vida", diz o advogado.

Sobre a violência institucional, Osny Brito diz que denunciou o caso à Corregedoria-Geral da Polícia Civil.

Procurada por Universa, a corporação informou apenas "que recebeu a representação e que vai apurar o caso".

Defesa de suspeito nega agressão

Paulo não foi encontrado para comentar o caso. A defesa dele alega que não houve agressão, mas um empurrão contra a vítima, sem a intenção de causar danos físicos.

"Não foi intencional porque não houve outra lesão além do corte na cabeça dela. Neste atrito, ele resolveu se afastar, mas, nisso, acabou a empurrando. Só que com força, fazendo com que a Ticiana batesse a cabeça. A perícia indica que não existem lesões na região frontal, o que mostra ter sido involuntário ou doloso", alega o advogado Juliano Barbosa.