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Envolvimento com tráfico eleva violência contra mulher no Norte e Nordeste

A mulher negra é a maior vítima de violência no país - Robin Gentry/EyeEm/Getty Images
A mulher negra é a maior vítima de violência no país Imagem: Robin Gentry/EyeEm/Getty Images

Luiza Souto

De Universa

27/08/2020 16h16

Uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil —foram 4.519 mulheres assassinadas em 2018, um índice de 4,3 a cada 100 mil mulheres que moram no país, e 68% delas eram negras, segundo o Atlas da Violência 2020, estudo anual produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que ganhou nova edição nesta quinta-feira (27).

Na divisão por estados, os números de assassinatos de mulheres que mais saltam aos olhos vêm das regiões Norte e Nordeste. Entre os estados em que as taxas de homicídios de mulheres aumentaram no período de 2017 e 2018, três apresentaram um crescimento superior a 20%: Roraima (93%), Ceará (26,4%) e Tocantins (21,4%).

Roraima e Ceará também apresentaram as maiores taxas de homicídio feminino por 100 mil habitantes em 2018 —20,5 e 10,2, respectivamente—, seguidos por Acre (8,4) e Pará (7,7). Esses estados também figuram entre aqueles com as maiores taxas gerais de homicídios no país em 2018, segundo o Atlas da Violência 2020.

No comparativo entre 2008 e 2018, o Brasil teve um aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres. Em alguns estados, a taxa de homicídios em 2018 mais do que dobrou no período, casos do Ceará (278,6%), Roraima (186,8%) e Acre (126,6%).

Os pesquisadores atrelam esse aumento à maior participação das mulheres no crime organizado: seja de forma efetiva, como traficantes, seja indiretamente, como quando elas se envolvem com criminosos. É nessas regiões onde há uma grande presença de facções como a Família do Norte.

Samira Bueno, diretora executiva do Fórum, cita uma "nova gramática das facções criminosas com essas mulheres" e propõe ampliar o debate sobre a violência de gênero sob esse contexto.

"A gente sabe que, ao longo dos últimos 20 anos, houve um crescimento exponencial de mulheres encarceradas por tráfico de drogas. Então, temos mulheres atuando no tráfico, e ali a gente tem essa mortalidade motivada pela questão do gênero. E elas também podem ser assassinadas pelo seu envolvimento", diz Samira.

O Atlas da Violência 2019 já tinha apontado o Ceará como o estado com a capital mais violenta do Brasil. E, de acordo com o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), 2018 foi um ano "brutal para meninas/mulheres", quando o índice de assassinatos de adolescentes passou de 27 para 114, em comparação a 2016 (em 2017, foram 80). Somente na capital, os números, em dois anos, saltaram de 6 para 59.

Para o Ipea, é um recorde histórico ligado à intensificação de conflitos interpessoais e o fortalecimento da atuação de facções criminosas na região, seja dentro das cadeias ou até nos bairros da periferia da capital. "Esse ciclo de violência, em vez de ser interrompido por políticas públicas efetivas calcadas no trabalho de inteligência policial, mediação de conflitos e na prevenção social ao crime foi alimentado por apostas retóricas no inútil e perigoso mecanismo da violência para conter a violência", destaca o relatório daquela época.

Nesse contexto, a morte dessas meninas revela uma característica cada vez mais destacada por pesquisadores: o machismo que atravessa a atuação de gangues e facções criminosas. Majoritariamente masculinos, esses grupos, além de impor controle sobre espaços urbanos, como favelas e comunidades dominadas por eles, também querem domar o corpo de mulheres em torno do tráfico.

Recentemente, o UOL mostrou que o PCC (Primeiro Comando da Capital) agora é composto por dois núcleos de homens e de mulheres —ambos com a mesma hierarquia, poder de julgamento e nível de violência praticada contra facções rivais e ex-integrantes. A atuação de mulheres como "damas do crime", protagonistas de chefias no PCC, foi anunciada em julho último, pelas forças de segurança de Alagoas, que realizaram quatro ações policiais integradas contra a facção criminosa. Segundo as investigações, as mulheres atuam no tráfico de drogas e prática de homicídio.

Além dessa situação de vulnerabilidade, essas mulheres praticamente não têm a quem recorrer. Como em muitos estados há somente uma Casa Abrigo, que serve para afastar a vítima do agressor, esses locais evitam acolher quem tenha qualquer envolvimento com o crime, porque poderia expor outras vítimas que estão ali abrigadas.

"As casas já são muito precárias e, geralmente, não têm nenhum tipo de segurança. O ideal é que ninguém saiba onde essas mulheres estão, mas no interior ou nas cidades menores todo mundo sabe onde fica", diz Samira. "Quando se coloca numa equação a relação com o crime organizado, fica mais difícil para esses equipamentos garantirem a proteção dessas mulheres. E ainda tem o preconceito, porque [por causa do envolvimento com o crime organizado] as outras não querem elas ali."