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Gaslighting mina autoestima: "Ajoelhei e implorei para ele transar comigo"

Gaslighting é o abuso psicológico sofrido pela mulher em uma relação - 	fizkes/iStock
Gaslighting é o abuso psicológico sofrido pela mulher em uma relação Imagem: fizkes/iStock

Christiane Ferreira

Colaboração para Universa

21/10/2019 04h00

No início, parece que a mulher distorce fatos mais óbvios, por mais que lá no fundo saiba que não. Em um segundo momento, ela acha que está louca ou exagerando. Em seguida, tem plena certeza de que o homem ao seu lado tem razão de culpá-la, pois ela deve ter feito algo muito errado. A autoestima fica abalada, o ciclo perturbador se instala e a dependência é certa.

Essa pequena descrição é chamada de gaslighting, um dos abusos psicológicos que é extremamente sutil e faz parte de uma relação abusiva. "Isso é muito comum e se repete com frequência. O homem distorce, omite, cria novas informações e a vítima passa a duvidar da sua sanidade e memória. Ele a coloca como louca para pessoas ao redor e fala com tanta veemência que, mesmo que a mulher saiba que tem razão, acha que está maluca", afirma a psicóloga Névia Rocha Pereira, especializada em atendimento à mulher.

Em longo prazo, diz a especialista, a mulher pode se tornar insegura e ter sua confiança e amor-próprio abalados, ficando cada vez mais dependente do seu abusador.

Violência nem sempre começa com agressão física

Julia Paolucci Sampaio, gestora do núcleo biopsicossocial da ONG Hella, que presta informação, orientação e acolhimento às mulheres em situação de violência, avisa que uma relação violenta não começa com um soco. Pelo contrário.

"Muitas vezes, o homem é carinhoso, amoroso e cuidadoso e aos poucos vai proporcionando o enfraquecimento da mulher ao dizer coisas como: você é burra, feia, ninguém vai te querer, só eu mesmo para te aguentar. Ou seja, o abuso psicológico faz com que ela perca a capacidade de acreditar em si mesma", afirma.

"Ninguém vai querer ficar com você"

A professora Larissa Modesto Guimarães, 33 anos, de Goiânia e que atualmente mora em Balneário Camboriú, chorou ao dar seu depoimento, principalmente ao se lembrar das palavras que seu ex-namorado, com quem ficou dos 19 aos 24 anos, proferia.

"Eu engordei muito durante o relacionamento. Ele dizia que ninguém ia querer ficar comigo, que era o único que me amava e que eu deveria me contentar. Depois de um tempo passou a falar que eu era frígida, pois não tinha mais vontade de transar. Às vezes, eu só fazia sexo para me livrar dele."

Larissa viveu todos os tipos de abusos psicológicos. Bissexual, certa vez durante um churrasco foi ao banheiro com uma amiga e lá ficaram conversando. Quando voltou à festa, o ex-namorado ficou em silêncio por horas.

"Quando o chamei em um canto e o questionei sobre o motivo de não falar comigo, me acusou de ter transado com a minha amiga. Me infernizou tanto que só parou quando eu ajoelhei (literalmente) e implorei para transar comigo para provar que o amava. Isso aconteceu mais de uma vez: se ele emburrava, só melhorava depois que fazíamos sexo", conta.

"Tentei suicídio"

A bióloga Camilla Rayza, 30 anos, de Goiânia, levou seis anos para sair de um relacionamento abusivo. Antes disso, tentou suicídio e correu risco de morte. Em uma oportunidade, seu ex-namorado, após tentativa de ela acabar com a relação, a colocou dentro do carro e correu pelas ruas a 150 quilômetros por hora sem respeitar os semáforos vermelhos. Outra vez, saiu correndo no meio da estrada e a levou junto. Ela passou por ameaças com faca e em cárcere privado por dois dias seguidos na casa do ex.

Camilla Rayza - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Camilla conta que o ex-companheiro sempre foi ciumento. Não admitia que ela conversasse com ninguém. Sentia ciúmes ao vê-la brincando com crianças, com seus cachorros, com qualquer um.

Queria atenção 100% do tempo. "Ele dizia que se eu não agisse de determinada forma ou se não vestisse tal roupa não teria motivos para brigar. A culpa sempre era minha. Tinha de avisar se saísse para qualquer lugar e dizer qual a roupa estava vestindo. Não conversava com mais ninguém com medo de ele brigar comigo", conta.

Atualmente, casada com outra pessoa, Camila relata que seu abusador não admitia que fizesse faculdade e a espionava escondido atrás de uma árvore durante o período da aula. "Certa vez, uma amiga me avisou que ele estava à espreita. Fui lá e o mandei embora, não aguentava mais ser sufocada. Terminei, mas a mãe dele me ligou e disse que ele estava em greve de fome. Quando reatei, mesmo contrariada, já estava decidida a me separar. Então ele me agrediu. Me senti tão pressionada que tentei me matar. Pus dois chumbinhos na boca, mas não tive coragem de engolir" diz.

"Pensei no sofrimento que traria à minha mãe. Mas o veneno derreteu na minha boca e eu fui parar no hospital com vômitos e diarreia. Minha família só soube o motivo verdadeiro tempos depois."

A bióloga afirma que após esse episódio foi procurar ajuda na igreja. "O pastor me disse que se ele quisesse se matar a culpa não seria minha. Só assim consegui me separar. Um tempo depois ainda descobri que ele teve uma amante durante a nossa relação."

Como pedir ajuda, trabalhar a autoconfiança

Não é fácil sair de uma relação abusiva. Como o abusador inventa mentiras o tempo todo e joga a família e os amigos contra a mulher, ela se sente sozinha para pedir socorro.

Apesar de ser alertada pelas amigas, a professora Larissa teve muita dificuldade em sair do relacionamento. Ela conta que as coisas só mudaram após conhecer um rapaz, com quem passou a conversar e a contar algumas situações pelas quais passava.

"Com o tempo esse moço se interessou por mim e vi que meu ex-namorado estava errado. Eu era atraente e interessante. Foi aí que tive coragem de dar um basta. Nunca mais vi esse rapaz, fiquei com ele apenas uma vez, mas sou muito grata a ele."

Para Julia Sampaio, da ONG Hella, um passo importante é duvidar do isolamento e se fazer perguntas como: "'Por que minha amiga e família não prestam? Por que não posso usar determinada roupa? O corpo é meu e tenho direito sobre ele".

A psicóloga Névia Pereira explica que buscar apoio por meio de psicoterapia é essencial. Algumas faculdades brasileiras oferecem atendimento gratuito. Além disso, há grupos de apoios para mulheres na internet que podem ajudar no fortalecimento emocional. "Só assim ela vai saber que não está sozinha", completa.

Apoio emocional

O CVV - Centro de Valorização da Vida tem um canal para receber ligações gratuitas de telefone fixo e celular: 188. O canal de apoio emocional e prevenção ao suicídio é para pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, 24 horas todos os dias. É possível entrar em contato pelo site do CVV, e falar por chat e e-mail.