Idealizar, desvalorizar e descartar: o ciclo dos relacionamentos abusivos
Relacionamentos tóxicos podem se formar em diferentes espaços sociais: na família, entre amigos, no trabalho e com a pessoa com quem você se relaciona amorosamente. Por envolver várias emoções e, às vezes, hierarquia, é muito difícil reconhecê-los e nomeá-los como tal.
Essa dificuldade pode estar na própria forma como a pessoa manipuladora age. São estratégias que fazem o outro se sentir culpado pela crise, impedindo um olhar crítico.
"É importante conversar com um profissional de saúde mental sobre a autoculpa e o que você viveu, porque não é culpa da vítima", destaca Stephanie Sarkis, psicoterapeuta norte-americana, em conversa com Universa.
A profissional se especializou em atender pessoas com TDAH, ansiedade e que vivem relacionamentos abusivos. Pela experiência, identificou padrões que podem ajudar a reconhecer e se livrar da situação.
Parte desse conhecimento está no livro "Gaslighting" (Editora Cultrix), lançado em 2019, que introduz as estratégias usadas por pessoas manipuladoras, e na mais recente obra "Liberte-se de Relacionamentos Tóxicos", que será lançado no dia 2 de fevereiro.
O novo livro analisa as consequências dessas relações abusivas e, a cada capítulo, mostra o que é preciso fazer para encarar o problema. É o tipo de leitura que você faz e consulta de vez em quando ou foca somente na parte que te interessa —mas Sarkis sugere uma visão completa.
A sensação é de estar lendo um guia para identificar, se livrar, se curar e se proteger de relacionamentos tóxicos. E foi exatamente como ela pensou.
"Quando você está neste tipo de relacionamento, ajuda ter um guia claro de ações que você pode ter", diz. "Há tantas emoções envolvidas e tempo gasto com pessoas que realmente ajuda poder olhar para algo que lhe dá algumas respostas que talvez sejam muito aplicáveis a sua situação."
O ciclo tóxico das relações
Sarkis escreve que o abuso nas relações se dá, por exemplo, por competição, conflitos, ciúme, ressentimento, hostilidade e comportamento controlador. Ela identificou um ciclo que se apresenta em qualquer cenário:
- O relacionamento começa de forma muito intensa. É a fase do love bombing (bombardeio de amor). A pessoa te coloca num pedestal, diz que você é a melhor companheira, a profissional mais competente, o amigo mais verdadeiro. "Eles vêm com muita força, pressionarão por compromisso muito rapidamente", diz Sarkis.
- Em seguida, vem a desvalorização. Começa com uma implicação por qualquer coisa: seu corpo, suas roupas, a forma como você faz as coisas, sua personalidade. A pessoa vai te isolar do mundo, destruir sua autoestima e chega a esconder seus itens e te acusar de irresponsável. "Essa é a parte do gaslighting. Eles vão fazer você sentir que está enlouquecendo e que sua versão da realidade não é confiável. Portanto, naturalmente, confiamos nessa pessoa para sua versão da realidade."
- Por fim, a fase do descarte. Muitas vezes, segundo a psicoterapeuta, a pessoa agressora vai te trair, romper com você ou ficar enfurecida por algum limite que você imponha. Quando o relacionamento chega ao fim, não é por completo, porque haverá tentativas de retorno.
Eles agirão com raiva ou farão algo chamado bloqueio, como se a pessoa não existisse. Quando a vítima não responde, eles tentam fazer com que a pessoa volte porque não querem perder essa atenção. Stephanie Sarkis, psicoterapeuta
A autora comenta que relacionamentos saudáveis também têm altos e baixos, mas são conflitos possíveis de superar. Na relação tóxica, as oscilações entre uma fase boa e outra ruim têm picos intensos —e justamente por não ser abusiva 100% do tempo, ela se mantém. É o que a especialista descreve como vínculo traumático.
TDAH, ansiedade e pessoas mais vulneráveis
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Quero receberSarkis atende como psicoterapeuta há mais de 20 anos. No início, se especializou em TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade) e ansiedade. Com o tempo, percebeu que esse público tende mais a estar em relacionamentos tóxicos.
Segundo ela, pessoas com TDAH têm dificuldade de manter amizades e relacionamentos, estão sempre em busca de aprovação. Então, quando surge alguém elogiando, exaltando suas qualidades, é um risco. "É inebriante para qualquer pessoa, mas principalmente para quem não se sente aceito", diz.
Mas a vulnerabilidade não se restringe a esse perfil. Pessoas com qualquer condição médica, transtorno psiquiátrico ou em luto, por exemplo, estão suscetíveis a relações tóxicas.
Na cabeça de quem abusa
Sarkis explica que as pessoas abusadoras, às vezes, foram criadas por pais abusivos e carregam essa característica por acharem que é normal. Por vezes, elas nascem com "conexões cerebrais ruins", que as deixam entusiasmadas com o poder e o controle sobre o outro.
Em alguns casos, quem abusa começa a perceber o tipo de comportamento que tem e o dano que causa. Se quer mudar, certamente busca um psicoterapeuta.
"A pessoa tem de ser capaz de perceber que não quer mais viver assim. Acho que essa é a parte principal, mas nem todos os abusadores chegam a esse ponto", afirma.
Mas ter um histórico de educação deficiente ou questões fisiológicas não exime a pessoa do ato. "Somos 100% responsáveis."
Quebrando o ciclo
Por mais desafiador que seja sair de um relacionamento tóxico, há uma espécie de momento-chave que vira todo o jogo. Para Sarkis, é quando a pessoa abusadora ultrapassa um limite do outro.
"Se seus filhos são maltratados por essa pessoa, ou um amigo ou membro da família de confiança diz: 'ei, você não tem sido o mesmo'. Ou a pessoa começou a procurar aconselhamento, conversou com um psicoterapeuta e percebeu que não é assim que deveria ser tratada", exemplifica.
Ficar longe da pessoa tóxica por um tempo e perceber que a vida é melhor sem ela é outro sinal importante. A partir daí, Sarkis sempre recomenda, em primeiro lugar, buscar ajuda de um especialista em saúde mental.
Em "Liberte-se de Relacionamentos Tóxicos", a autora ainda apresenta estratégias para sair de relacionamentos tóxicos independentemente do tipo de vínculo e o que fazer quando não é possível romper totalmente com a pessoa —no caso de casais com filhos ou um chefe do qual você não pode escapar agora.
Sarkis considera que o debate sobre relacionamentos abusivos tem ajudado as pessoas a identificar o cenário mais rapidamente. "Há mais informações disponíveis agora que o abuso emocional e o abuso verbal são uma forma de violência doméstica tanto quanto o abuso físico."
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