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Imagem de Marielle Franco na SPFW abre debate sobre violência contra negros

Desfile de Ronaldo Fraga na São Paulo Fashion Week - Marcelo Soubhia/Fotosite
Desfile de Ronaldo Fraga na São Paulo Fashion Week Imagem: Marcelo Soubhia/Fotosite

Aline Ramos

Colaboração para Universa

29/04/2019 18h35

Marielle Franco foi assassinada há mais de 400 dias, mas ainda não há respostas sobre os responsáveis pelo crime. A morte brutal da vereadora do Rio de Janeiro tem comovido e inspirado artistas de diferentes áreas em suas criações. Ronaldo Fraga é um deles. Em seu desfile na 47ª edição da São Paulo Fashion Week, o estilista levou peças com o rosto de Marielle para a passarela.

O que para Ronaldo Fraga era um protesto foi encarado como sadismo por ativistas, artistas e influenciadores negros. O estilista se inspirou na obra "Guerra e Paz", de Cândido Portinari, para criar a coleção que apresentou no maior evento de moda do Brasil. A partir do questionamento "o que Portinari pintaria se estivesse em 2019?", Fraga respondeu com a sua própria leitura da realidade: a violência da qual a população negra é alvo diariamente.

As imagens de Marielle alvejada por tiros em uma camisa e com um alvo na testa em um tênis foram consideradas chocantes pela escritora e arquiteta Stephanie Ribeiro. "Há um uso constante da imagem da Marielle, mas nem todas as pessoas que fazem isso refletem sobre o que significa", afirmou.

Essa não foi a primeira vez que um item de moda é criticado por usar o assassinato de Marielle Franco de modo "vazio". Cinco meses após a morte da vereadora, a Nike convidou artistas de rua para customizar alguns de seus calçados com liberdade total. O artista Alexandre Órion aproveitou a oportunidade e escreveu "Marielle Presente" em um tênis da marca.

Um dos principais pontos dessa discussão é que geralmente os artistas não pedem autorização prévia à família de Marielle Franco para usar a imagem ou o nome dela. Por se tratar de um crime ainda sem respostas, o argumento é de que essa falta de cuidado pode trazer mais sofrimento para quem foi atingido diretamente pela tragédia.

Tênis em homenagem a Marielle Franco - Marcelo Soubhia/Fotosite - Marcelo Soubhia/Fotosite
Tênis em homenagem a Marielle Franco no desfile de Ronaldo Fraga na SPFW N47
Imagem: Marcelo Soubhia/Fotosite

Para o desfile na SPFW, Ronaldo Fraga pediu autorização do uso de imagem da obra "Guerra e Paz" para o filho de Portinari, mas não entrou em contato com a família de Marielle. A irmã da vereadora, Anielle Franco, usou o Instagram para se posicionar sobre o desfile. "Eu realmente não entendo quase nada de como funciona o mundo da moda, mas me incomodei com a imagem da minha irmã sendo mais uma vez exposta sem aviso prévio da família", explicou. Ela também contou que o estilista ligou para pedir desculpas e esclarecer que as peças não serão comercializadas e serão enviadas aos seus pais.

Negros na arte

Além da discussão sobre a autorização para uso da imagem, o episódio da SPFW também está longe de um desfecho por outra questão: as peças com o rosto de Marielle levantaram um importante debate sobre a representação da população negra na arte.

Para a cineasta Jéssica Queiroz, a arte brasileira tem fetiche em representar negros em contextos de violência e dor. "Geralmente, quando artistas brancos que vivem distante da realidade da população negra vão construir essa representação, eles partem de suas próprias visões, que podem estar atreladas a estereótipos racistas", explica.

A cineasta, negra e moradora da zona leste de São Paulo, já abordou a violência contra jovens negros de periferia no curta-metragem "Peripatético". O filme, vencedor de prêmios em festivais de cinema como Tiradentes e Brasília, foi aclamado pela crítica justamente por apresentar uma visão sobre a violência que não é violenta. "A arte tem o poder de criar imaginários e gerar efeitos. A partir do momento que criamos novas possibilidades de existência, informamos que a população pode ser vista de outra maneira", reflete Jéssica Queiroz.