Um em cada cem bebês pode nascer cardiopata; diagnóstico precoce é arma

Ana Luísa e Murillo têm dez e 14 anos, respectivamente, e vivem a rotina agitada das crianças dos grandes centros urbanos de hoje: estudam, brincam, fazem diversos cursos extras. Ana Luísa frequenta aulas de balé e toca trompete. Murillo anda de skate e joga futebol. No entanto, cada uma das atividades que eles experimentam é comemorada como uma vitória: antes mesmo de nascerem, foram diagnosticados com graves problemas cardíacos. Passaram por cirurgias e contabilizam anos de acompanhamento médico intensivo, mas, atualmente, convivem bem com a doença, porque puderam contar com diagnóstico e atendimento precoces.
A mãe de Murillo, Flávia Mauricio da Silva, 40, descobriu que algo estava errado com o filho ao fazer uma ultrassonografia de rotina no oitavo mês de gestação. “O obstetra que acompanhava a gravidez solicitou uma ecocardiografia fetal urgente. Fizemos e a médica nos enlouqueceu, dizendo que nosso bebê teria de ser operado nos primeiros dias de vida e que o problema era muito sério: anomalia de Ebstein”, conta Flávia.
O coração de Murillo apresentava uma malformação da válvula tricúspide, que lhe causava insuficiência cardíaca. “Foram dias de tristeza e apreensão até o nascimento. Murillo nasceu lindo, grande, gordo, mas precisou ser entubado e internado na UTI. Depois de algumas semanas, contrariando todos os prognósticos, já mamava no peito. Mas ainda precisou passar por duas doloridas cirurgias para chegar até aqui. E hoje já está quase da altura de sua médica”, diz Flávia.
Diagnóstico precoce
A mãe de Ana Luísa, Daniela Ruivo Busch Sensato, 36, também recebeu um diagnóstico alarmante, por volta da 20ª semana de gestação. Ana Luísa apresentava TCGA (Transposição Corrigida das Grandes Artérias): os ventrículos eram trocados de lugar. Por isso, quando engravidou da segunda filha, Daniela precisou fazer um ecocardiograma fetal mesmo após o resultado normal do ultrassom morfológico.
“O risco de ter um filho cardiopata é de 1% para qualquer mulher. Mas, no caso das mães que já tiveram um filho com problema no coração, as chances dobram”, afirma Daniela.
A estatística é confirmada pelo cardiologista pediátrico Paulo Henrique Manso, professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, no interior do Estado: uma em cada cem crianças brasileiras pode nascer com cardiopatia congênita, ou seja, com alguma anormalidade na estrutura ou função do coração. O dado deriva do artigo "Congenital Heart Disease: Changes in Form and Function", publicado pelo British Heart Journal.
“Pesquisas indicam que, provavelmente, há algum fator genético, pois o risco de cardiopatia dobra quando há algum caso na família. A chance de malformações congênitas no coração também aumenta quando a mãe contrai alguma infecção, como a rubéola. Mas, na maior parte das cardiopatias, não se consegue identificar nenhum fator de risco”, diz o especialista.
Teste do coraçãozinho
O médico ressalta, no entanto, que não se pode falar de cardiopatia congênita como uma única doença. Existem diversas anormalidades que podem surgir durante a formação cardíaca do bebê. Algumas delas, cerca de 20%, podem se resolver de forma espontânea. Outras, se não identificadas por meio de exames, serão percebidas apenas na fase adulta, depois que o coração já foi submetido a anos de sobrecarga, o que pode piorar o quadro. Foi o que aconteceu com o ator Norton Nascimento, que descobriu uma doença cardíaca congênita aos 41 anos, em 2003.
Nascimento se submeteu a uma cirurgia para substituir uma válvula no coração. Sem sucesso, fez, então, um transplante, mas acabou morrendo em 2007.
De maneira geral, quanto mais cedo for feito o diagnóstico, melhores as chances de tratamento. “Alguns tipos de doenças cardíacas congênitas podem sofrer intervenções ainda durante a gestação”, declara Fábio Augusto Selig, especialista em cardiologia pediátrica e cardiopatia congênita no adulto pelo InCor (Instituto do Coração) de São Paulo e médico do Centro de Cardiopatias Congênitas e Estruturais do Paraná.
Por isso, em junho deste ano, o Ministério da Saúde incorporou o exame de oximetria de pulso como parte da triagem neonatal do SUS (Sistema Único de Saúde). “O exame verifica a taxa de oxigênio do sangue. Se estiver baixa, a chance de existir uma cardiopatia congênita grave é grande, e deve-se investigar melhor”, afirma Selig.
O exame, que já é chamado de teste do coraçãozinho, não é invasivo e é totalmente indolor: consiste apenas em colocar sensores em contato com a pele do bebê (geralmente, na ponta do pé).
Associação de apoio
A obrigatoriedade do teste do coraçãozinho é uma conquista que tem relação direta com o trabalho realizado pela Associação de Assistência à Criança Cardiopata Pequenos Corações. A entidade sem fins lucrativos, com sede em São Paulo, agora batalha para ver aprovada uma lei que torne obrigatório o ecocardiograma fetal, que pode diagnosticar a cardiopatia ainda durante a gestação.
A instituição nasceu em 2006, com Thiago, segundo filho da advogada Márcia Adriana Saia Rebordões, de Bauru, no interior de São Paulo. Ainda grávida, ao receber a notícia de que a grave cardiopatia de seu bebê era “incompatível com a vida”, Márcia sentiu o chão fugir-lhe dos pés, mas não se entregou: buscou informações e apoio de especialistas.
“Na época, quase só havia dados científicos desanimadores”, conta ela. O blog criado para trocar informações sobre a cardiopatia de Thiago foi a semente da associação, que hoje se espalha por todo o país, por meio de mais de 50 núcleos de voluntários.
Orientações sobre diagnóstico e tratamento hoje estão no site da entidade e também em um livro distribuído gratuitamente pela associação, o guia “Cardiopatia Congênita de Mãe para Mãe”, que teve o aval da cardiologista pediátrica Rosângela Belbuche Fitaroni, especialista do Hospital Beneficência Portuguesa, de São Paulo.
A publicação também traz orientações sobre os cuidados que a criança cardiopata deve ter ao longo de seu desenvolvimento (que deve ser acompanhado duplamente, pelo pediatra e pelo cardiologista pediátrico) e os benefícios a que tem direito, como o acesso a algumas vacinas gratuitamente.
“A criança cardiopata deve receber imunização para o vírus sincicial respiratório; vacina pneumocócica (pneumonia pneumocócica); vacina contra influenza (gripe); vacina contra varicela (catapora) e vacina contra hepatite A. Todas são fornecidas gratuitamente pelo Ministério da Saúde, devendo o pediatra ou o cardiologista pediátrico fazer relatório comprovando a cardiopatia”, diz Rosângela.
Márcia conta, emocionada, que durante três anos teve o privilégio de viver com uma criança sorridente e cativante, que superou todas as expectativas. Quando ele morreu, Márcia decidiu que aquilo tudo que ela havia começado, levando força e esperança para tantas famílias, teria continuidade. Segundo a SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), cerca de 70% dos quadros de cardiopatia congênita têm potencial de cura com tratamento adequado.
“A minha recomendação é buscar ajuda médica e confiar. Esses bebês são muito fortes, guerreiros. A gente diz que a cicatriz da cirurgia cardíaca nessas crianças é a marquinha da vitória”, fala Márcia.
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