Topo

Criança transexual não deve ser reprimida e precisa de apoio familiar

Os pais não devem reprimir a criança que não se identifica com o seu sexo biológico - Getty Images
Os pais não devem reprimir a criança que não se identifica com o seu sexo biológico Imagem: Getty Images

Rita Trevisan e Suzel Tunes

Do UOL, São Paulo

03/09/2014 07h15

Nos últimos anos, têm ganhado espaço nos veículos de comunicação as notícias de crianças que, ainda muito pequenas, revelam o que os especialistas chamam de “inadequação de gênero”, apresentando um comportamento oposto ao que a sociedade associa ao sexo com o qual nasceram. É o caso da norte-americana Ryland, 6 anos, cuja história se popularizou na internet. Ryland nasceu menina, mas, logo que aprendeu a falar, uma de suas primeiras frases foi: “sou um menino”.

A criança detestava o cabelo comprido e as roupas femininas. Seus pais, Jeff e Hillary Whittington, acharam que era apenas uma fase. O momento decisivo ocorreu quando, aos cinco anos, chorando, ela perguntou aos pais: “Por que Deus me fez assim?”. Depois de pesquisas e consultas a especialistas, o casal chegou à conclusão de que Ryland era transgênero, ou seja, embora tivesse nascido com anatomia feminina, seu cérebro a identificava com o gênero masculino. Desde então, a criança é tratada como filho. Teve os cabelos cortados como desejava e usa roupas de menino.

Outro caso que teve grande repercussão nos Estados Unidos foi o de Coy Mathis, menino de seis anos que, desde os 18 meses, age como menina. Aos quatro, ele disse aos pais que “havia algo de errado com seu corpo” e começou a ficar deprimido ao se ver com roupas masculinas.

Os pais permitiram que a criança começasse a se vestir como menina e, no ano passado, conquistaram na Justiça o direito de Coy de usar o banheiro feminino da escola. 

Não é doença

Segundo o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), o fenômeno surge, geralmente, por volta dos três anos, que é quando a identidade de gênero se estabelece.

Chamado popularmente de transexualismo, o fenômeno é conhecido nos meios acadêmicos como Transtorno de Identidade de Gênero ou, mais recentemente, como Disforia de Gênero (a palavra disforia pode ser compreendida como indisposição ou mal-estar), mas existe, em todo o mundo, um debate acerca da necessidade de não tratar a transgenerismo como uma doença.

“O transgenerismo não constitui nenhuma espécie de patologia”, afirma a psicanalista Letícia Lanz, cujo nome de batismo era Geraldo. Só aos 50 anos, ela assumiu sua identidade feminina.

Geraldo era um bem-sucedido consultor empresarial que, quando adotou nome e roupas femininas, perdeu todos os clientes e teve de recomeçar do zero. Tornou-se psicanalista e, recentemente, obteve um mestrado em sociologia pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) com a pesquisa “O Corpo da Roupa: a Pessoa Transgênera entre a Transgressão e a Conformidade com as Normas de Gênero”.

“Não sou doente, nem física nem psiquicamente”, afirma Letícia. “Esse diagnóstico não é meu, mas do meu psiquiatra e analista, do meu cardiologista e da minha endocrinologista. Doente é a sociedade que sempre exigiu que eu reprimisse a essência de mim mesma apenas para adotar um modelo de existência incompatível com a pessoa que sou.” 

Nem todo transgênero é homossexual

A psicanalista diz que uma pessoa é transgênero quando, de maneira superficial ou profunda, em caráter esporádico ou de maneira definitiva, não se identifica com a classificação de gênero constante da sua certidão de nascimento. E esclarece que o transgenerismo não é sinônimo de homossexualidade.

A psicanalista explica que um transgênero pode ter orientação sexual hetero, homo, bi ou assexual, exatamente como acontece com qualquer pessoa. “Sou uma mulher transgênera casada com uma mulher cisgênera (cuja identidade de gênero está em consonância com o seu sexo) há 38 anos, sendo pai de três filhos e avô de três netos.”

Experimentações são normais

Na primeira infância, é natural a curiosidade do menino por roupas e objetos tradicionalmente ligados ao universo das meninas e vice-versa. Mas, se um garoto, ocasionalmente, veste a roupa da mãe, isso não significa que ele seja transgênero.

“Os pais devem tomar cuidado de não reprimirem e, sim, introduzirem comportamentos do sexo em que a criança nasceu, mas respeitando a vontade dela. Se for somente experimentação, isso cederá rapidamente”, diz o psiquiatra Alexandre Saadeh.

Contudo, quando a criança se identifica muito fortemente com o gênero oposto e faz birra ou fica deprimida na hora de vestir as roupas identificadas socialmente ao sexo no qual nasceu, é possível pensar que exista Transtorno de Identidade de Gênero.

“O interessante é acompanhar ao longo do tempo para perceber se esse comportamento permanece. Quando os pais reprimem muito, a criança percebe seu comportamento como errado e busca viver no gênero que os pais querem. Mas isso vai causar sofrimento e dificuldades de relacionamento”, afirma Saadeh.

Jeff e Hillary Whittington, os pais de Ryland, só se decidiram a criar a filha como menino quando, em suas pesquisas, descobriram a alarmante informação de que 41% dos transgêneros tentam suicídio devido à falta de aceitação social. E, na população em geral, esse índice é de 4,6%. A pesquisa foi divulgada, em janeiro de 2014, pelo Instituto Williams, pertencente à Escola de Direito da UCLA (Universidade da Califórnia).

Sofrimento e suicídio

“O sofrimento a que as pessoas trans estão submetidas as leva, muitas vezes, a pensar em suicídio”, confirma a psicóloga Judit Lia Busanello, diretora do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids-São Paulo.

A psicóloga afirma que o processo de adequação à verdadeira identidade de gênero é muito delicado e deve ser acompanhado de perto tanto pela família quanto por profissionais especializados.

Para Letícia, o que os pais jamais devem fazer é colocar ou permitir que coloquem rótulos nos seus filhos. “Seja lá o que eles forem diante dos códigos da sociedade, a família deve acolhê-los como eles são e ensiná-los a ter orgulho de ser gente."