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Xan Ravelli

Carta Aberta ao Tempo: você dita ritmo, eu resisto e sigo sem medo de você

Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

25/10/2020 04h00

Em algum momento você pensou em parar, estacionar por alguns instantes, Tempo? Espera, o momento certo não é esse! Desculpe começar este texto dessa forma, já que somos amigues e eu lhe tenho tanta gratidão e intimidade. Também entendo que não é a primeira vez que te peço pressa.

Você teve muita paciência para suportar anos de adolescência num ambiente escolar hostil que me agredia mental, emocional e fisicamente sem que eu tivesse dimensão do porquê. E eu me lembro como pedia, como contava os dias a menos que teria que frequentar naquele lugar que não suportava a presença de uma menina preta, e que foi aos poucos me forçando para baixo, me encolhendo, fazendo de tudo para que eu me sentisse péssima por ser eu, para que eu sentisse vergonha por estar ali. Eu respirava e a gente seguia.

Costumo dizer que paciência é uma virtude de treino, é possível exercitar a paciência, até porque em alguns momentos a única coisa que nos resta fazer é esperar. Esperar o bebê nascer, esperar que a idade nos traga sabedoria e maturidade necessárias para entender o mundo de outra forma, esperar, querido Tempo, que você decida o momento em que as coisas devem ser.

Isso não é tarefa fácil, já encontrei muita gente que pensa que tempo faz parte do seu círculo de poder, aquele espaço em que as decisões e ações dependem unicamente da gente, mas sabemos que você é maior, e que só permite essa ilusão do gerenciamento até a primeira atribulação - aliás prefiro dizer atribulação a contratempo, por reverência a sua grandeza e consciência de que o dito "contratempo" é algo que atrapalha a MINHA projeção de ideal do tempo, e portanto não é real, e porque você, Tempo, segue seu fluxo, sem se preocupar nem um pouco com os meus planos.

Combinar continuidade com mudanças, é uma das coisas que mais gosto em você. Seguimos enquanto humanidade ao mesmo tempo em que trilhamos nossas próprias jornadas pelas mesmas 24hs, 365 dias que nunca são iguais porque o universo, o mundo e nós estamos em constante mudança.

"Apressa-te a viver bem, pensa que cada dia é, por si só uma vida", já disse o pensador estoico Sêneca, porque a real é que não temos ideia do dia que a jornada acaba, certeza que acaba, mas o quando, o onde e o como, não nos pertence, assim como a ideia de futuro. E o que será dos que ficam?

Enquanto tenho vivido, nunca como em 2020 você se apresentou tão supremo. Humildemente venho aqui nessa carta pedir que passe rápido, se apresse, porque é foda não conseguir prospectar um futuro, o ano que vem dos meus filhos. Eu bem queria usar palavras mais rebuscadas, mas é foda mesmo ter que esperar solução, esperar conscientização, esperar o dia em que a gente se torne mais empático, mais paciente, mais humano.

Gente morrendo, bichos morrendo, florestas morrendo, enquanto gente esconde dinheiro na cueca e briga pra ter estuprador em time de futebol. Corre Tempo, por favor corre pra apressar esse processo de evolução espiritual, ou corre só pra que passe mesmo e que a gente possa recolher os cacos do que tenha sido.

É só um desabafo, viu, Tempo. Porque eu sei que você vai seguir sendo o que é. E eu vou fazer aquilo que faço de melhor: resistir, existir, esperar, continuar e seguir sem medo, sem fugir de você. Sigamos dançando enquanto você dita o ritmo.

"O Tempo dá, o Tempo tira, o Tempo passa e a folha vira!" - ditado em honra ao Orixá Iroko