Topo

Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dois livros, dois sábados e um luto: mulheres grávidas que perdem o marido

Em dois livros recentes, mulheres grávidas perdem os companheiros: o que o tema comum da ausência abrupta desses homens diz sobre nossos tempos? - Unsplash
Em dois livros recentes, mulheres grávidas perdem os companheiros: o que o tema comum da ausência abrupta desses homens diz sobre nossos tempos? Imagem: Unsplash

Colunista de Universa

29/01/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Já me peguei algumas vezes com a sensação de urgência para publicar um texto depois de escrito, como se ele pudesse repentinamente ser roubado. Já me vi também perplexa ao esboçar uma coluna que estava há tempos na minha cabeça e me deparar em seguida com um post exatamente sobre o mesmo assunto. Já me vi com receio de ser plagiada e de plagiar inadvertidamente, já me vi muitas vezes pensando acerca do limite entre inspiração e imitação, intertextualidade e cópia.

Posso imaginar, então, a angústia das escritoras Mariana Salomão Carrara e Silvana Tavano ao se depararem com o livro uma da outra. Sei que não se conheciam e não tinham como ter a menor ideia de seus recíprocos trabalhos e projetos, e eu mesma me espantei com a série de coincidências entre "Não Fossem as Sílabas do Sábado", de Mariana, publicado em 2021 pela editora Todavia, e "O Último Sábado de Julho Amanhece Quieto", de Silvana, que saiu no mesmo ano pela Autêntica Contemporânea.

Para além do sábado no título, ambos os livros tratam de um tipo muito específico de luto, o de uma mulher grávida que perde o marido; tanto Ana quanto Beatriz ficam viúvas antes que André e Cristiano sequer saibam que seriam pais; ambas as protagonistas já sabiam esperar um filho e ambas aguardavam o melhor momento para dar aos parceiros a notícia quando eles morrem tragicamente.

Há semelhanças importantes também na maneira como a morte dos maridos se dá nos livros. Depois, a gravidez e a dor absurda da perda, a falta de sentido, as palavras de cada uma contornando e apontando o vazio e a pergunta nem sempre silenciosa de como lidar com a vida apesar da morte.

Apesar das coincidências, são livros muito diferentes, tanto na linguagem quanto na estrutura. Os capítulos de Silvana são organizados com sagacidade em semanas da gravidez que transcorre, com digressões acerca da infância de Beatriz e uma aproximação delicada da personagem, sua dor aparecendo nos gestos mais ínfimos; Ana narra a própria história uma década depois, a filha já crescida, com uma voz singular que faz resplandecer a inteligência de Mariana.

As coincidências me fazem pensar não só acerca dos livros, mas também nisso que se costuma chamar de zeitgeist, o espírito do tempo, aquilo que faz ideias que creio serem minhas se apresentarem simultaneamente a outras pessoas, e também no significado que essas similitudes podem ter.

No caso dos sábados de Mariana e Silvana, o que as levou, ambas, a escrever sobre mulheres que se veem repentina e tragicamente sem os maridos? Que outros sentidos podem ter duas mulheres lidando sozinhas com o peso de uma vida que começa? O que diz a impossibilidade da alegria quando a alegria deveria justamente imperar?

Talvez a ausência abrupta desses homens que morrem dialogue mais amplamente com nosso tempo, um tempo em que as mulheres ocupam cada vez mais o papel de provedoras sem ter abdicado (ou se livrado) daquele a que se resumiram por séculos, o de "dona de casa"; talvez a impossibilidade da alegria quando por tanta alegria se esperava seja, nos livros de Mariana e Silvana, uma metáfora para a nossa condição atual: temos toda a tecnologia nas mãos, temos tudo, menos a paz sabática que esperaríamos que este momento da humanidade nos trouxesse.

Temos e não temos futuro, ou temos um futuro condenado pela crise climática, e precisamos então lidar ao mesmo tempo com a vida e a morte. Viver e seguir e gestar apesar de, como se agora nos coubesse o que sempre foi a condição humana, mas numa espécie de ápice do que Hannah Arendt condensa assim: os seres humanos, "embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar".