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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O mundo escrito pelas mulheres: a importância da literatura feita por elas

JulPo/Getty Images
Imagem: JulPo/Getty Images

Colunista de Universa

10/06/2022 04h00

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Sempre começo a escrever meus textos mentalmente, talvez porque, como para muitas mulheres, me falte tempo suficiente para isso. Quando me sento ao computador, já há frases elaboradas, ideias concatenadas, anotações em livros, cadernos ou no bloco de notas, e também referências separadas e prontas para servirem à composição.

Desta vez, tive problemas com as referências. Homens. Eram todas escritas por homens. Nada contra eles, exceto pelo fato de que, até há bem pouco tempo, eram voz quase única para dizer o mundo e tudo o que o constitui, até mesmo as mulheres. Fomos pensadas, teorizadas, inventadas, fomos escritas por homens.

Enquanto eles nos escreviam, as mulheres cuidavam da vida deles: alimentavam-nos, criavam seus filhos, supriam-nos de seus apetites sexuais, incentivavam-nos inclusive para que escrevessem -- para que continuassem escrevendo a elas mesmas. Elas: em silêncio, quase sempre em silêncio.

Nos primórdios do surgimento do romance moderno, as mulheres tinham um papel definido: o de leitoras. Diz Ian Watt (sim, sim, um homem) que "as mulheres das classes alta e média podiam participar de poucas atividades masculinas, tanto de negócios como de divertimento. Era raro envolverem-se em política, negócios ou na administração de suas propriedades; tampouco tinham acesso aos principais divertimentos masculinos, como caçar ou beber. Assim, dispunham de muito tempo livre e ocupavam-no basicamente devorando livros." As que não tinham tempo livre, bem, sabemos: cozinhavam, amamentavam, organizavam, limpavam.

As poucas que se arriscavam a ocupar o papel que não costumava caber a elas, ou seja, o de autoras, tinham algumas opções: publicar sob seus próprios nomes e terem suas obras consideradas literatura menor, de valor inferior àquela produzida pelos homens, ou escrever sob pseudônimo, geralmente masculino, ou sob iniciais que disfarçassem seu gênero. As exceções a isso contamos nos dedos e nos são muito caras até hoje, como Jane Austen e as irmãs Brontë.

A passagem do tempo, até meados do século passado, não resolveu o problema. Margaret Atwood, por exemplo, começou a escrever em revistas nos anos 1950 sob suas iniciais, para que o gênero não se interpusesse entre seus textos e a crítica especializada.

No contexto brasileiro, a situação não era muito diferente. Cabem nos dedos das mãos as autoras brasileiras consagradas no século 20. Tenho em casa um exemplo concreto disso: organizo minha biblioteca por uma ordem afetivo-cronológica, e no espaço reservado à literatura brasileira, mesmo que minhas escritoras preferidas sejam mulheres, até os anos 2000, homem, homem, homem, homem, mulher, homem, homem, mulher.

Gosto de Diadorim, Anna Kariênina, Emma Bovary, e continuarei gostando. Mas a escrita das mulheres por elas mesmas oferece mais que personagens.

A escrita das mulheres por elas mesmas oferece uma multiplicidade indefinível e inclassificável. Mulheres diversas: negras, brancas, indígenas, trans, cada uma pode dizer a si e ao mundo segundo sua própria dicção.

Podemos dizer os homens também, dar o troco secular, inventando-os à nossa maneira, deixando claro que literatura sobre maternidade e trabalho doméstico é, sim, literatura universal; e que as mulheres podem escrever sobre isso e sobre o que quiserem.

Segundo minha estante de livros, essa hora, se não chegou, está chegando: na literatura brasileira contemporânea dos últimos anos: mulher, mulher, mulher, homem, mulher, homem, homem, mulher.

Um momento digno de nota. Mais: um momento de celebração.

Na fotografia, alguns sustentam uma postura elegante; outros, espontaneidade que esbanja prazer. Alguém mostra a língua para um outro cuja metade do rosto traduz diversão, enquanto as crianças olham para a câmera, atentas. Todos sorriem, senão com o rosto, com algo de si.

"Um grande dia no Harlem", fotografia icônica de Art Kane com os grandes nomes do jazz dos anos 1950, é a celebração de um encontro. A celebração da alegria de quem pode dar ao mundo a própria voz; ou simplesmente da alegria.

No próximo fim de semana, todas as escritoras que se identificam como mulher estão convidadas para ocupar as escadarias do Pacaembu, na Feira do Livro, e de várias cidades do Brasil e mundo afora. Faremos fotografias que celebrem este momento, a alegria das autoras por detrás dos livros que têm ocupado as estantes e o campo literário. Vamos fotografar a efervescência, vamos celebrar nossa voz.

Que nossa voz possa não apenas dizer o mundo, mas também transformá-lo.