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Fabi Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Monstros são os outros: o que você faz quando vê esses monstros ao redor?

As últimas demonstrações de violência contra mulheres são claros indicadores sobre quão sistêmico e profundamente estrutural é o problema - coldsnowstorm/Getty Images
As últimas demonstrações de violência contra mulheres são claros indicadores sobre quão sistêmico e profundamente estrutural é o problema Imagem: coldsnowstorm/Getty Images

Colunista de Universa

14/07/2022 04h00

Tô há três dias tentando digerir os últimos acontecimentos, enquanto sigo vivendo, fazendo minhas coisas. Ao mesmo tempo, fiquei pensando (e atrasando) sobre essa coluna de opinião: "Meu Deus, sobre o que vou falar?". "Esse" assunto já tá coberto, muita gente gabaritada já falou sobre. Não preciso falar também... Mas falo sobre o quê, então? Ah, vou falar sobre brigas entre amigos... Não, não. Pera, já sei, vou falar sobre quando o spoiler é permitido no rolê. Menor chance... Beleza! Claro! Vou falar sobre Beleza, tendências, compartilhar um trucão bafônico.

Me desculpem, não tem outro assunto possível. Não tem como não falar sobre esse momento. "Ah, também vai falar sobre o monstruoso anestesista?" Não, vou falar sobre você, sobre mim.

Achei que valeria a pena trazer uma contribuição. Por isso, convidei o Freudão. Se liga nessa ideia dele (em 1930, vejam só...):

"O quê de realidade por trás disso, que as pessoas gostam de negar, é que o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele, o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus [O homem é o lobo do homem]."

Nossa, que horror, que pessimista esse boy. Bom, em uma folheada no jornal ou clique num link, podemos constatar que isso acontece diariamente e bem diante dos olhos.

BEM DIANTE DOS NOSSOS OLHOS! E esse é o ponto. Nesse texto "O Mal-estar na Civilização", Freud sinaliza que uma das funções mais importantes da sociedade, da civilização, é justamente botar esse arreio no ser humano, para evitar a barbárie.

E, como somos alecrins dourados tão evoluídos, já não precisamos mais andar com a machadinha nas costas. Não mesmo? O que assistimos essa semana não foi uma barbaridade?

O que garante a tranquilidade e ousadia do senhor Giovanni Quintella Bezerra ao usar o corpo, ao estuprar uma mulher desacordada numa sala de cirurgia em meio a outras pessoas?

Pra além das possíveis elucubrações sobre as condições psíquicas desse homem, ele agiu com a certeza de que aquele corpo estava à disposição. Sob controle, domínio e poder. E que corpo é esse? Um corpo de mulher.

As últimas discussões envolvendo corpos e direitos das mulheres postas e expostas às situações de violência e humilhação são reveladoramente explícitas em relação à crença, na verdade, à certeza sobre quem opina e decide sobre esses corpos. Nunca as mulheres envolvidas na situação, sempre os outros, de preferência os homens.

Estupro e feminicídio são os últimos estágios, os mais violentos e brutais de uma escala de violências. Essas violências se dão diariamente, o tempo todo. Quando, numa situação trivial, naturalmente se cala ou interrompe uma mulher. Quando se autoriza comê-la com os olhos em função do que ela tá vestindo. Quando você, espontaneamente, opina sobre quão deplorável é o visual dela. Quando você se vangloria por um conhecimento ou habilidade muito superiores ao dela. Quando, por ciúmes e, supostamente, em nome do amor, você se autoriza a proibi-la de algo. Pesquisem, estudem, leiam, conversem entre si e se impliquem.

Já que o monstro são sempre os outros, o que você faz quando percebe esses monstros ao seu redor? Quando ele manda uma piadinha inadequada na mesa do bar, você sorri ou faz a indigesta tarefa de marcar, de apontar essa singela erva daninha?

As últimas demonstrações de violência contra mulheres são claros indicadores sobre quão sistêmico e profundamente estrutural é o problema. Se quisermos mesmo nos acreditar civilizados e parar esse horror, precisamos nos implicar nisso desde o início.