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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Opinião: Falas de Sérgio Camargo são exemplo do racismo que gera auto-ódio

Rudzhan Nagiev/Getty Images/iStockphoto
Imagem: Rudzhan Nagiev/Getty Images/iStockphoto
Ana Paula Azevêdo

Colaboração para o UOL

31/08/2021 13h06

O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, é um assíduo usuário das redes sociais, onde costuma destilar ódio, na maioria das vezes, contra pessoas negras e pessoas ditas de esquerda.

Recentemente, viralizou a expressão "afromimizentos", expressão que aparece com frequência no vocabulário de Camargo desde o final do ano passado e que utiliza para se referir à comunidade negra que se posiciona contrariamente às suas falas e práticas discriminatórias envolvendo a temática racial. Mas, adverte: pode ser direcionado a pessoas não-negras, "basta ter a mesma ignorância, vocação para vitimista e para capacho da esquerda".

Há centenas de postagens envolvendo a negativa de existência do racismo no Brasil; relativização da escravidão; defesa da extinção do movimento negro; ofensa à religiosidade de matriz africana; contestação da negritude de políticas mulheres; zombaria à identidade estética afro; defesa da extinção do Dia da Consciência Negra. Sua rede social é espetáculo de horrores, de ofensa e de ódio, muito ódio. Gratuito, constante e intenso.

No último dia 27 de agosto, o Ministério Público do Trabalho ajuizou ação com pedido de afastamento imediato de Camargo da Presidência da Fundação por assédio moral, pois as investigações apuraram que o presidente "estaria praticando perseguição ideológica a trabalhadores [com] opiniões e posições políticas e ideológicas distintas das suas", "pessoas negras de esquerda" foram apontadas como principais alvos da governança assediadora de Camargo.

São inúmeras as ações judiciais já movidas contra ele no país, Defensoria Pública da União, pessoas físicas, organizações. Foi denunciado até na Comissão de Direitos Humanos da ONU, pela Coalização Negra por Direitos.

É possível submeter a apreciação do Judiciário as práticas cometidas por Camargo a partir de diversos vieses: com repercussão penal (envolvendo crime de racismo e injuria racial), repercussão cível (com o ajuizamento de ações indenizatórias), repercussão trabalhistas (como fundamento de assédio moral, como propôs o MPT), de caráter administrativo-constitucional de defesa do patrimônio negro e dos princípios constitucionais e valores democráticos, com possibilidade de desdobramento internacional. Todavia, Sérgio Camargo continua na presidência da Fundação Palmares.

A reflexão aqui proposta não é sobre o desserviço para a população negra que é Camargo como presidente da Fundação Palmares. Tal fato nos parece inconteste.

Hoje, é preciso dizer que, apesar de seu discurso e posturas de caráter discriminatório, Sérgio Camargo reproduz racismo, não o cria, o que apenas confirma a tese de que o racismo nos mata de inúmeras formas, retira-nos de nós mesmos, esvaziando-nos, fazendo-nos odiar quem somos, nossas raízes, nossas (os) irmãs (ãos), à procura de um reflexo branco que possa acalantar a nossa alma, alma que sempre disseram que não tínhamos.

São pessoas que não se enxergam enquanto negras, pois no máximo reconhecem a escuridão da tez e, reproduzem, sem qualquer filtro, o discurso do colonizador. O colonizador? Zomba dele, do preto, que desesperadamente tenta afirmar a sua brancura, por meio de seu corte de cabelo, pelo discurso da meritocracia, pela sua orientação política, por sua religiosidade ocidental, pela sua identificação com o homem branco, sujeito universal. O colonizador zomba de nós: "Olha lá teu irmão!". Eles riem. Nós, não.

O que nos mobiliza nessa reflexão é evidenciar que existem mil camadas a serem discutidas sobre os efeitos de um processo de escravização que atravessou séculos e que se evita falar e enfrentar neste país, do racismo que está arraigado em nosso cotidiano de normalidade, forçosamente "encoberto" sob o ardiloso argumento do mito da democracia racial, pois o processo de abolição é falacioso.

Ao final, que não nos esqueçamos que o pior racista é e sempre será a pessoa branca, como nos convida a refletir a jornalista Silvia Nascimento, do site Mundo Negro, pois são as pessoas brancas que criaram este sistema, que vivem nele e gozam dos "benefícios históricos e centenários frutos do racismo", inclusive dos benefícios derivados de seu consectário mais nefasto, que acompanhamos nesse caso: o auto-ódio da pessoa negra.

*Colaborou a advogada Manoela Alves, professora de Direito Constitucional; conselheira estadual e presidenta da Comissão de Igualdade Racial da OAB/PE.