Elas rodam a baiana

Como a vestimenta do candomblé marca um lugar de poder e prestígio para mulheres negras de terreiro

Hysa Conrado De Universa, em São Paulo

"O que é que a baiana tem? Tem pano-da-costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem!" Há mais de 80 anos, Dorival Caymmi compunha uma de suas canções mais famosas em homenagem às mulheres afrodescendentes da Bahia. A vestimenta, ainda mais antiga do que a música, segue sendo símbolo de luta e tradição das brasileiras que têm o candomblé como religião.

E qual história essa roupa conta? Mais do que eternizada pelos versos do poeta, como manda o chavão, a indumentária das mulheres de terreiro fala sobre afirmação de identidade e resgate da autoestima como ferramenta de sobrevivência.

Paola Tauana Santos, 30 anos, cresceu frequentando o terreiro da nação Ketu fundado por sua avó, dona Aparecida Bispo de Xangô, no início dos anos 1990. Foi no Ilé Obá Asè OGODO, no extremo sul de São Paulo, que a auxiliar de logística fez sua iniciação nos ritos do candomblé há cinco anos —hoje, ela é uma yaô, nome que se dá às pessoas com menos de sete anos de "feitura".

"Eu tinha 13 anos quando usei pela primeira vez a saia que foi da minha avó. Eu sempre a ajudava a colocar os sete saiotes [adereço que dá volume à vestimenta], ficava deslumbrada vendo ela com todos aqueles panos. Hoje, sempre que coloco o meu pano de cabeça, minha saia e meu pano da costa, fecho os olhos e lembro dela", diz, exemplificando como a vestimenta é passada de geração em geração.

No fio da memória

Não existe livro sagrado ou cartilha que garanta os ensinamentos do candomblé. Tudo o que se sabe e o que se faz na religião é passado de forma oral há cerca de 200 anos, tempo que remonta à fundação dos primeiros terreiros da Bahia. É por isso que, no culto, o tempo de iniciação conta como cargo e posto: ao ouvir uma mulher de terreiro falar, é possível rememorar um século de história e costumes.

"Eu aprendi a fazer a goma e a engomar meus saiotes vendo a minha avó Maria José, mãe da minha mãe. Ela usava panela, água, amido de milho. Aprendi a ter o cuidado de deixar a goma no ponto certo, a quarar o saiote para engomá-lo branquinho e, depois, estender do jeito tradicional para ficar bem armado", conta a yalorixá Vivian Basílio, 52 anos, sacerdotisa do Ilê Axé de Yansã, casa de candomblé da nação Angola, localizado na zona leste de São Paulo.

É desta forma que a vestimenta da baiana se mantém como costume —mesmo quando pensar em engomar uma anágua e escolher a renda que vai adornar o pano de cabeça parece roteiro de um filme de época. Para a yalorixá Luciana Bispo, 50 anos, mãe de santo do Ilé Obá Asè OGODO, trata-se de responsabilidade ancestral.

"O cuidado com a roupa é uma forma de revisitar a nossa ancestralidade, porque o candomblé é continuidade. Eu não posso deixar de ensinar a minha filha a cuidar da roupa dela, porque aprendi a cuidar da minha com as senhoras que me antecederam", afirma.

Sinto que estou cumprindo com tudo o que elas fizeram para que tivesse, inclusive, liberdade de andar com a minha indumentária no metrô, ou no avião. Porque, por muito tempo, tínhamos que andar escondidas.

Luciana Bispo, yalorixá do Ilé Obá Asè OGODO

Vestimenta de liderança

Foi esse compromisso que possibilitou que a baiana se perpetuasse como um dos maiores símbolos da religião, perpassando a modernidade sem sofrer grandes modificações, de acordo com Daisy Santos, museóloga e pesquisadora das vestimentas de terreiro. Ela é yá kekerê (cargo de confiança do líder de uma comunidade de candomblé) do Ilê Asè Ojisé Olodumare, casa da nação Ketu situada em Barra de Pojuca, na Bahia.

A forma como a vestimenta se construiu conta a história de um tempo em que as mulheres africanas escravizadas precisavam realizar a manutenção dos elementos da sua cultura, entre os séculos 18 e 19, ressignificando-os à nova realidade. Além disso, agrega outros elementos de vestuário que elas conseguiram acessar, como a proposta de armação que dá volume às saias, herança europeia da colonização.

"Poder usar essa roupa é uma forma de recordar essas mulheres que encontraram estratégias de sobrevivência e conseguiram aglutinar as pessoas em quilombos urbanos, que são os candomblés. Então, estamos falando de uma vestimenta que é um investimento de liderança de mulheres extremamente inteligentes e com um poder de estratégia muito grande. Ao me vestir assim, eu sinto que estou carregando algo que é para além de mim", afirma a pesquisadora.

A baiana, o samba e o carnaval

Um dos pontos de partida do samba carioca é o fundo do quintal de mulheres que migraram da Bahia para o Rio de Janeiro, no final do século 19, e levaram na bagagem a tradição do candomblé e a familiaridade com os tambores que ajudaram a construir o ritmo. Mas o que a roupa tem a ver com isso?

As tias do samba, como ficaram conhecidas, usaram a vestimenta tradicional como um trunfo de identidade e afirmação de território e é em homenagem a elas que existe a tradicional ala das baianas nos desfiles das escolas de samba, segundo Angélica Ferrarez, pós-doutora em sociologia política e pesquisadora da história social do samba e das mulheres no pós-abolição.

"Estamos falando de um Rio de Janeiro que, naquela época, estava bebendo dessa fonte de Salvador. E Salvador, por sua vez, estava bebendo de uma fonte da África. Essas mulheres foram para as ruas, para o comércio. E manter a vestimenta tradicional foi uma estratégia de marketing para elas venderem seus quitutes", destaca Angélica.

Quando as indumentárias começaram a ser homenageadas no Carnaval, ainda não existia a festa como se conhece hoje, e a folia ficava por conta dos blocos que desfilavam em uma verdadeira disputa para proteger a bandeira-símbolo de cada um. Nesse cenário, a roupa à moda baiana era usada como uma proteção para que nenhum invasor chegasse ao estandarte.

"Essa roupa era vestida tanto por mulheres quanto por homens. E muitos deles eram, em sua maioria, capoeiristas. Dançavam e rodopiavam em um movimento de defesa da bandeira, alguns costuravam até navalhas nas saias, porque perder a bandeira era visto como uma desmoralização", conta a pesquisadora.

Na Zona Portuária do Rio de Janeiro, conhecida como Pequena África, ficaram marcados nomes como o de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, e de outras matriarcas que usaram suas habilidades sociais e políticas para dinamizar o samba na cultura brasileira, mesmo em um momento de repressão às expressões afrodescendentes.

"Elas são muito estratégicas no sentido de formar uma rede de apoio para existir. Para que esse quintal continue tocando o samba sem a batida da polícia, elas vão construindo conexões para além do terreiro. Precisavam ser amigas de uma sociedade mais ampla, como políticos e jornalistas", pontua.

Hoje, a ala das baianas mantém a estrutura que reproduz o aspecto da saia rodada, mas as navalhas deram lugar às fantasias representativas de cada enredo.

O que veste a baiana

As peças que compõem a indumentária das mulheres no candomblé:

'Minha roupa me lembra quem eu sou'

"Quando eu era criança, lembro que me chamavam de neguinha e de 'nega lisa' por causa da minha pele, mas nunca me deixei intimidar. Hoje, na minha família de axé, sempre sou chamada para usufruir o meu lugar de ebomi, para ficar altiva e reconhecer o meu valor", diz Cristiane dos Santos, 54 anos, sinalizando como celebrar a autoestima, dentro das comunidades de terreiro, também é uma estratégia para resistir.

Para quem não é adepto do candomblé, no entanto, as denominações hierárquicas da religião, como yalorixá, ekedi, ebomi, yaô, abiã, podem confundir. Aqui, também é a vestimenta que marca o lugar e indica as posições sociais dentro do terreiro.

Abiã é toda pessoa que ainda não passou pelos ritos de iniciação. Já o yaô é o médium que entra em transe e que tem menos de sete anos de iniciado. Para ambos os grupos, a baiana segue parte da tradição entre as mulheres, mas sem tecidos ou rendas luxuosas, e mostra o lugar de quem chegou para aprender com a família de axé. Para os recém-iniciados, vestir apenas branco é parte essencial do primeiro ano de preceitos.

"A roupa me traz essa sensação de pertencimento e me ajuda a alcançar uma parte de mim que eu não sabia que existia. Dentro do terreiro, me elogiam porque minha baiana está bem armada, porque o torso [pano na cabeça] está bonito e sou incentivada diariamente a ser eu. Do lado de fora, sou ensinada que preciso ser menos negra e que tenho que me envergonhar da minha pele", relata Maira Heloiza da Silva, 34 anos, iniciada há um ano como yaô no Ilê Axé de Yansã.

'Meu ser mulher é potencializado'

A vestimenta tradicional, homenageada por Dorival Caymmi, representa um lugar de prestígio, senioridade e sabedoria dentro da religião. A baiana rendada, em tecidos com o tradicional bordado richelieu, a bata e o pano de cabeça amarrado com as abas proeminentes, é uma ebomi, médium com mais de sete anos de iniciação. A yalorixá, que é a mãe de santo da comunidade, também usa a indumentária.

"Quando se tinha aquela sociedade de séculos atrás, as mulheres brancas usavam aquelas armações embaixo do vestido, o cabelo bem arrumado, os brincos e os colares com aquele luxo. A baiana para nós, mulheres negras, também traz essa imposição. E o zelo de estar bonita e bem cuidada. Quando eu me visto bonita, com a saia bem armada, com os meus fios de conta, eu sou uma referência para os meus filhos e a minha família de axé", destaca a yalorixá Vivian Basílio.

A ekedi é um cargo destinado às mulheres que não incorporam e cumprem uma função de cuidado com a comunidade, repassando os ensinamentos para aqueles que estão dando os primeiros passos na religião e também zelando pelos orixás que incorporam durante as festas e os ritos.

Para mim, a indumentária tem um significado muito importante, porque é a partir dela que as pessoas me reconhecem como uma referência que está à disposição para o orixá e para a comunidade. Quando coloco essa roupa branca, sou a mãe Fernanda.

Fernanda Sousa, 28 anos, ekedi do IIé Obá Asè OGODO

"Fora do espaço do terreiro, eu sou uma mulher lésbica que não se veste de acordo com o padrão de feminilidade e muitas vezes as pessoas me destituem do ser mulher, me tratando no masculino. Mas, no terreiro, com a indumentária feminina, o meu ser mulher é reconhecido, respeitado, potencializado e não é colocado em questão", diz.

Para ela, a indumentária da baiana com rendas mais elaboradas também faz parte do vestuário, mas existem outros modelos indicativos do cargo, como o conjunto pareô, formado por uma bata com manga três quartos e uma saia envelope usada sem armação, ou mesmo o alaka, um tipo de túnica.

'Criança fez o sinal da cruz para mim'

Na dimensão do terreiro, a existência dessas mulheres ganha novos significados e propósitos. Na rua, por outro lado, a roupa tradicional atrai olhares carregados de intolerância religiosa e racismo, que tentam subverter o significado da cultura resguardada por elas.

"Durante o período em que cumpria o meu preceito de iniciação, saía à rua com a minha indumentária e os meus fios de conta. Um dia, uma criança olhou para mim e fez o sinal da cruz, com os olhos arregalados. Tentei encontrar os olhos dela e sorrir, mas é muito triste quando as pessoas simplesmente decidem ofender todo o significado da religião e das vestes de alguém", relembra a yaô Maira Heloiza.

Para a ekedi Mayara Sousa, 33 anos, do Ilê Axé de Yansã, isso acontece porque existe uma cultura que pormenoriza as religiões de matriz africana, como se elas não fossem sagradas o suficiente para serem respeitadas.

Dentro da casa de axé, o signo dessa roupa traz um status que nós, pessoas negras, não temos na rua. Usar essa vestimenta, mesmo que não seja a mais luxuosa, nos coloca em um lugar de rainhas. Para quem incorpora, é a roupa que a pessoa vai estar quando receber o deus dela no próprio corpo. Mas, muitas vezes, quem é de fora não dá a mesma importância que daria de primeira para a religião do colonizador, por exemplo.

Mayara Souza, ekedi do Ilê Axé de Yansã

'É como entrar em um reino'

Apesar da tradição e do tempo que a indumentária da baiana está presente na cultura brasileira, são poucas as opções de lojas voltadas para esse segmento. Por isso, é comum que mulheres de terreiro que saibam o ofício da costura passem a confeccionar as roupas para a família de axé. Essa relação é vista, por alguns adeptos, como uma forma de conexão ancestral.

"Esse processo de ir comprar o tecido, levar para a costureira, é uma linha direta de fazer parte da família. A gente vai entendendo o candomblé ao fazer parte, não é algo que dá para saber como é antes de entrar. Então, até a entrega da roupa faz parte desses processos que vão criando conexão com a família", afirma Jennifer Sabino, 28 anos, abiã do Ilê Axé de Yansã.

Com o e-commerce, as dificuldades para adquirir as vestimentas tradicionais da religião têm diminuído, mas ainda assim não é fácil encontrar lojas que ofereçam peças em pronta-entrega. No geral, é preciso encomendar, o que pode exigir semanas ou até meses de antecedências das festas de candomblé, segundo a yalorixá Elizabeth Passos, 43 anos, proprietária da loja Fire Rose Moda Afro, especializada nas indumentárias da religião e localizada na zona leste paulistana.

"É lindo quando entregamos a primeira roupa ou o primeiro enxoval da pessoa que está começando na religião. Ela fica muito emocionada, não vê a hora de colocar, porque é como se passasse a fazer parte de um reino. Eu incentivo outras mulheres a costurar roupa de candomblé, não tenho problema com concorrência, porque sei que dói não conseguir encontrar as nossas vestimentas em um shopping", finaliza.

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