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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como Juliette, eu sei o que é sofrer xenofobia em rede nacional

A cozinheira potiguar Irina Cordeiro - Divulgação
A cozinheira potiguar Irina Cordeiro Imagem: Divulgação
Irina Cordeiro

Colaboração para Universa

04/02/2021 12h01

Painho era Paraibano e mainha Norte-rio-grandense, culturas diferentes unidas pelo Seridó, uma microrregião que integra esses estados. Comida "das boa", sabe?! Macaxeira, queijo coalho, queijo manteiga, carne de sol, paçoca, filhós, "bulacha", cuscuz feitin na hora com o milho que nós mesmos plantamos. Cresci aprendendo que tudo isso era nossa maior riqueza.

Numa família onde comida é ouro, o maior desejo de uma criação satisfatória são os estudos. Pois estudei, visse? Afe Maria, acordava às cinco horas da manhã para revisar a matéria antes mesmo do professor passar na aula, porque sabia que não poderia errar, que aquela era minha única chance de mudar minha realidade. E assim fiz... Me formei! Primeira mulher da família a conquistar um diploma.

Vibrei por toda uma vida na escassez. E quando não se existe abundância material, o que supre é o afeto. Abraçamos muito "mermo", "agarramu", "arroxamu", dançamos só no rossa-rossa, bate-coxa. Falar sem olhar no olho é uma afronta. Falamos mesmo que doa, pois gostamos da verdade de ser o que somos.

Eu achava inclusive que em todo canto era assim, até vir ao Sudeste para participar de um reality e perder o chão, a fala e sentir na pele o que é preconceito linguístico e xenofobia. Você deve estar achando que tô aqui contando a história da Juliette, a menina do BBB21, né?! Mas deixa eu te dizer que é a minha e a de tantos outros que de nove estados do Nordeste brasileiro nasceram.

Eu achava que todo preconceito que vivi estava curado até começar a acompanhar a edição 21 do BBB e ter todos os gatilhos disparados. É muita angústia, meu povo. Dói demais, pois já ouvi muitas palavras atiradas à Juliette, com a mesma justificativa da incompreensão.

Lembro até hoje quando entrei no Masterchef Profissionais e todos ou tinham pena de mim ou riam compulsivamente da minha forma de falar. Virei meme imediatamente. Todas as minhas falas eram viralizadas com tons de humor. Recebi até críticas de pessoas do meu próprio estado dizendo que estava sendo forçada e que sugeriam que eu focasse na cultura de fora para ganhar o programa. Nem os culpo. Afinal, crescemos vendo na TV que estrelas nascem no eixo Rio-São Paulo e que não somos merecedores de estar em espaços de destaques.

Crescemos aprendendo que pessoas de sotaque forte deveriam neutralizá-lo para estar na TV. Crescemos vendo que Nordestinos apenas podem ser caricatos dentro do humor.

A advogada paraibana Juliette, em momento do BBB 21 - Reprodução/ Globoplay - Reprodução/ Globoplay
A advogada paraibana Juliette, em momento do BBB 21
Imagem: Reprodução/ Globoplay

Juliette sonhou toda uma vida com a Disney do BBB. Entrou sentindo-se uma estrela, numa casa diferente com os favoritos, ao lado de seus ídolos. Euforia é coisa pouca!

Eu mesma estaria pulando que nem pipoca. Mas esses dias rapidamente se passaram como num passe de mágica e a Cinderela Nordestina em sua carruagem de jerimum logo incomodou a todos.

Se fala alto, fala demais, é mal-educada, deselegante, arrogante, chata, 'intrometida', digna de ódio, de abuso e xenofobia. Seja na cara, sem dó, ou pelas costas com ridicularização ou coletivamente. Juliette está vivendo o que todo Nordestino enfrenta ao chegar na cidade grande... 'Se coloque no seu lugar'. 'Você é inferior'. 'Você é motivo de piada'. 'Você tem de aprender a ser educado como somos'

Posturas colonizadora, opressora e que apenas autoriza que sejamos submissos. A cena de Juliette tentando expor a todos que estava sofrendo e que precisava ser ouvida, me fez chorar por toda uma madrugada. Um a um se retirava da conversa.

A sentença de ser e seguir sozinha já foi dada pelo tribunal brutal do BBB 21. E, por sorte, temos aqui fora uma comunidade unida, que sente e viveu o mesmo que ela, que destina amor o suficiente para acolhê-la em toda jornada. Mas que também grita, como um gigante, que esse lugar não iremos mais ocupar.

Sejam bem-vindos ao NOVO NORDESTE. De Juliettes, de Irinas, de Jaqueline Goes de Jesus, de Durval Muniz, de Kleber Mendonça Filho, de Marta Vieira da Silva, da intelectualidade, da ciência, da cultura, da gastronomia, do acolhimento e da pluralidade. E nem vem nós por em suas caixinhas que já não cabemos mais. "Aqui é eita por cima de eita e se tu não quer compreender, ai dentu!"

*Irina Cordeiro é potiguar, cozinheira, tem 32 anos e vive em São Paulo. Participou do Masterchef Profissionais em 2017, foi apresentadora do Nhac GNT e do programa Tá bom demais, em Nossa. Agora ela está no comando do Refresco, que estreia dia 12, no UOL.