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Análise: como explicar tantas demissões nas empresas de tecnologia?

Mark Zuckerberg, CEO da Meta: sem dinheiro de investidores ou bens para vender, restou demitir - Anthoyn Quintano/Wikimedia Commons
Mark Zuckerberg, CEO da Meta: sem dinheiro de investidores ou bens para vender, restou demitir Imagem: Anthoyn Quintano/Wikimedia Commons

Rafael Kenski

Colaboração para Tilt

11/11/2022 12h53

O ambiente de trabalho das grandes empresas de tecnologia, conhecido pelos refeitórios luxuosos, piscinas de bolinha e máquinas de pinball, ganhou uma nova marca nos últimos meses: demissões em massa. As duas principais vieram de plataformas de redes sociais: Twitter demitiu cerca de metade dos funcionários na semana passada e a Meta (antiga Facebook) demitiu 11 mil funcionários (13% de sua força de trabalho) na última quarta-feira.

Mas não foram os únicos. Segundo o site Layoffs.fyi, que monitora demissões em massa, mais de 118 mil funcionários em 766 startups no mundo foram dispensados em 2022. No Brasil, eles contaram 7.292 demissões.

A crise é estranha à primeira vista: talentos são um recurso tão raro em empresas de tecnologia que muitas compram pequenas startups, jogam fora o produto ou serviço que estavam desenvolvendo e ficam apenas com a equipe. Os funcionários talvez sejam o elemento mais valioso que possuem: sem grandes fábricas ou terrenos, o patrimônio de negócios digitais se concentra em propriedade intelectual, em segredos industriais e no conhecimento da equipe - esse último, agora desprezado.

Parece só um pequeno tremor nas contas de grandes empresas, mas pode significar algo mais: uma mudança no setor de tecnologia como um todo. Em parte, a crise vem do cenário macroeconômico ou da forma como empresas de tecnologia operam. Mas também surge da descoberta, pelos grandes visionários da indústria, de que o mundo é mais complicado do que gostariam.

Há décadas seguindo o lema de se "mover rápido e quebrar coisas", eles agora parecem ter entrado em um movimento que quebra as próprias empresas.

O mundo da tecnologia até então

Pode ser que você e quase toda a humanidade não perceba, mas uma característica da economia em que vivemos é ter dinheiro sobrando: nunca existiram tantos bilionários, fundos ou empresas procurando onde investir e sem imposto para pagar. Desde 2009, as taxas de juros de grandes economias como Europa e Estados Unidos estavam baixas, então quem quisesse um grande retorno sobre seus investimentos precisava de movimentos mais arriscados do que simplesmente comprar títulos do governo.

A tecnologia trouxe um fluxo constante desse tipo de oportunidades. Apesar de 80% das startups falharem, as demais davam lucro o suficiente para compensar. Segundo a empresa CB Insights, existem hoje 1.175 "unicórnios" (empresas privadas avaliadas em mais de um bilhão de dólares) e, em 2021, dois deles surgiram a cada dia no mundo. Esse tipo de negócio nem precisava dar lucro, desde que crescesse rapidamente e desse aos investidores a expectativa de, no futuro, tirar dali mais do que haviam colocado.

Para as startups, a regra era quebrar alguma indústria do mundo e substituir por algo que parecesse mais rápido, eficiente, bonito ou legal - algo a que os economistas se referem como "destruição criativa". "Softwares estão comendo o mundo", disse, em 2011, Marc Andreessen, um dos maiores investidores de capital de risco dos Estados Unidos. Em alguns casos, dava até para brincar que o mundo comia software: uma das empresas que mais se valorizou entre 2010 e 2017 (mais do que Apple, Tesla, Amazon ou Netflix) foi a Domino's Pizza, que desenvolveu novas maneiras de vender o produto pela internet.

E, então, em 2020, a transformação digital recebeu um de seus maiores impulsos: a pandemia de covid-19. Enquanto outros setores lutavam para manter suas operações, empresas de tecnologia cresciam entregando, a um mundo em quarentena, versões digitais de tudo o que antes só existia fora de casa.

Mas de onde vem essa crise?

O mundo mudou em 2022. Em primeiro lugar, a pandemia passou e as pessoas não dependem mais de soluções virtuais para tudo. Na economia, fatores como linhas de produção interrompidas, endividamento acumulado na pandemia, guerra na Rússia e o resto das loucuras que vivemos no último ano geraram um aumento de inflação, o que levou governos a subirem a taxa de juros.

Quem tinha dinheiro sobrando pode agora simplesmente colocar em um título do governo e ganhar um retorno razoável, em vez de apostar em um sistema potencialmente revolucionário de entregar bolo de cenoura na sua casa. E, por último, grandes empresas, prevendo uma diminuição global no consumo, cortaram boa parte de seus gastos com publicidade - a principal fonte de renda de gigantes como Google, Twitter e Facebook.

A receita das empresas de tecnologia diminuiu, e a salvação tradicional - pegar dinheiro de investidores - ficou mais difícil: eles não estão tão dispostos a investir em startups e, quando o fazem, esperam um retorno mais seguro e imediato. "Quebrar o mundo", ainda que com criatividade, virou algo mais arriscado depois que essas plataformas começaram a ser acusadas de colocar em risco a privacidade, a noção de verdade e a democracia.

Essas empresas precisam então de dinheiro. Como não têm terrenos ou bens para vender, sobrou só demitir. Daí já dá para entender as demissões da Meta e do Twitter, mas, no caso deles, essa história tem outros detalhes interessantes.

Zuckerberg em sua versão avatar para o metaverso - Reprodução/Meta - Reprodução/Meta
Zuckerberg em sua versão avatar para o metaverso
Imagem: Reprodução/Meta

A empresa conhecida antes como Facebook já enfrentava outras dificuldades: a concorrência da chinesa TikTok e questionamentos de autoridades sobre impactos negativos e a legalidade de suas práticas. A resposta foi, no melhor estilo Vale do Silício, prometer destruições criativas ainda maiores: no caso, o objeto a ser superado era a própria realidade em que vivemos. Era o "metaverso", a proposta de simular a realidade em que vivemos em um ambiente semelhante ao de videogames, no qual as pessoas poderiam viver e trabalhar.

Em teoria, é uma jogada de mestre: traria para a agora renomeada Meta dados sobre todos os aspectos da vida dos usuários, criaria uma plataforma online só dela e permitiria vender hardwares (óculos virtuais), software, serviços e bens digitais, tudo em uma mesma estratégia. Na prática, é algo que tanto usuários quanto investidores acham caro, desconfortável e perigoso e que, mesmo que um dia dê certo, ainda vai demorar para se popularizar. O resultado foi uma queda de 76% nas ações da Meta em 2022.

Já os investidores do Twitter encontram uma maneira mais segura de garantir o retorno sobre seu investimento: aproveitaram que Elon Musk, então pessoa mais rica do mundo, ameaçou comprar a empresa no começo do ano e o obrigaram a fechar o acordo. Musk logo aplicou ali seu estilo peculiar de gestão, baseado em poucos funcionários que trabalham mais que um ser humano foi feito para aguentar e no foco em princípios básicos de engenharia por trás do problema. Foi com essa abordagem que ele criou os foguetes mais eficientes e a marca de carros mais valiosa do mundo. Daí o racional para, já na primeira semana, demitir quase todo mundo e estabelecer um conjunto de regras sem qualquer teste ou consulta.

Elon Musk - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
Musk descobriu, a duras penas, que comunidades de usuários não se comportam como foguetes ou carros
Imagem: GETTY IMAGES

Só que a realidade do Twitter é diferente da que estava acostumado: controlar uma comunidade na internet é muito mais difícil do que pilotar foguetes. Pneus não tentam burlar as regras criadas para controlá-los e satélites não tiram proveito da falta de vigilância para passear em outros planetas. O resultado é que, desde então, relatos de abusos cresceram, regras precisaram mudar quase diariamente e muitos anunciantes, já ressabiados em colocar dinheiro na plataforma, fugiram de vez.

Não me arrisco a apostar como esse setor evoluirá daqui em diante. O que parece sensato é acreditar que o ciclo de inovações rápidas capazes de derrubar indústrias estabelecidas deve continuar - mas, dessa vez, talvez o alvo sejam as grandes empresas de tecnologia. A principal ameaça veio deles mesmos: os funcionários demitidos estão sendo contratados por outras empresas com finanças mais estáveis, ou criando as próprias empresas.

O corte nos investimentos em startups aconteceu principalmente para empresas em estágio avançado, aqueles que exigem somas às vezes bilionárias. Mas os pequenos aportes, em empresas que acabaram de nascer, continuaram estáveis ao longo do ano. E são justamente essas startups que poderão nascer de centenas de milhares de funcionários com anos de prática em tecnologia, cheio de motivações e ideias que não conseguiram executar enquanto empregados.