Topo

Google x MP: STJ pode julgar em agosto disputa pelos dados do caso Marielle

Vereadora Marielle Franco (Psol) assassinada junto do motorista Anderson Gomes - Reprodução
Vereadora Marielle Franco (Psol) assassinada junto do motorista Anderson Gomes Imagem: Reprodução

Helton Simões Gomes

De Tilt

12/06/2020 11h58

A disputa do Google contra o Ministério Público do Rio de Janeiro para não fornecer dados à investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e seu motorista Anderson Gomes teve uma novidade nesta semana, que traz a possibilidade de um julgamento do caso em agosto.

A 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu na terça-feira (9) por encaminhar os recursos da empresa de tecnologia para a 3ª Seção e sugere que o caso seja julgado dentro de dois meses.

Estão em jogo os seguintes pedidos de informação feitos ao Google:

  • Todos os dados de geolocalização dos usuários que estavam na noite de 2 de dezembro de 2018 nos arredores de onde foi visto pela última vez o carro usado pelos atiradores. Devem ser apresentadas informações coletadas em um período de 15 minutos;
  • Buscas no Google por sete palavras-chave ("Marielle Franco", "vereadora Marielle", "agenda Marielle", "agenda vereadora Marielle", "Casa das Pretas", "Rua dos Inválidos 122" e "Rua dos Inválidos") feitas por quaisquer usuários nos cinco dias antes da noite do crime.

A promotoria estadual acredita que estes dados podem dar cara e nome aos assassinos que estavam no veículo usado no crime, um Cobalt prata e de placa KPA-5923. Foi este o carro usado pelos homens que mataram Marielle e Anderson em março de 2018.

O veículo só seria visto novamente quase nove meses depois, em um pedágio da Via Transolímpica, que liga o Recreio dos Bandeirantes a Deodoro, ambos na Zona Oeste do Rio.

Os investigadores já analisaram as imagens das câmeras do local, mas não conseguiram identificar os ocupantes do carro. As defesas dos dois suspeitos presos pelo crime —o sargento reformado da PM, Ronnie Lessa, e do ex-PM Élcio Vieira de Queiroz— afirmam que eles não foram filmados dentro do carro.

Mas, para investigadores e promotores, é possível chegar aos criminosos e até ao mandante por meio do cruzamento dos dados produzidos pelos celulares de quem estava na região e com as buscas online por termos relacionados à rotina de Marielle.

Após acionar a Justiça ainda em agosto de 2018, o MP-RJ chegou a obter decisões favoráveis. Mas o Google levou a discussão para instâncias superiores ao recorrer ao STJ em janeiro deste ano.

A empresa já compartilhou outras informações com a investigação, mas negou dar acesso aos dados solicitados por considerá-los amplos demais. O fornecimento deles representaria uma violação da privacidade de pessoas que não estão envolvidas no crime e não são sequer investigadas.

O Google argumenta na Justiça que o caráter genérico da solicitação viola a Constituição e o Marco Civil da Internet. Acrescenta ainda que uma decisão neste sentido poderia abrir precedentes para que outras situações de quebra em massa do sigilo de informações ocorressem no futuro.

Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e blogueiro de Tilt, explica que o MCI, conhecido como "Constituição da internet brasileira", é bem claro quanto ao uso de dados de provedores de conteúdo para investigações policiais.

A lei determina que provedores guardem por um período o número de IP, a data e a hora do acesso às suas plataformas para eventualmente repassá-los a autoridades de investigação caso surjam ordens judiciais. Mas, estes pedidos devem ser específicos.

Em diversos momentos, o Marco Civil da Internet fala em 'ordem judicial específica', como no artigo 19, em 'fatos específicos', como no artigo 15, e em 'identificação clara e específica do conteúdo', como no artigo 19. Isso denota que a lei refuta o recurso a investigações e ordens judiciais genéricas e abrangentes, que podem violar a privacidade e a proteção dos dados pessoais conforme previsão do próprio Marco Civil da Internet e da Constituição Federal
Carlos Affonso de Souza, diretor do ITS Rio

Em resumo, seria necessário, por essa interpretação, que a investigação precisasse definir ao Google quais usuários deveriam ter seus dados expostos, e por quais motivos.

Após contato da reportagem, o Google afirmou que não comenta casos específicos. "Ao mesmo tempo em que protegemos vigorosamente a privacidade dos nossos usuários, apoiamos o importante trabalho das autoridades investigativas, produzindo dados em resposta aos pedidos, desde que sejam feitos respeitando preceitos constitucionais e legais previstos na legislação brasileira."

Este caso já gerou uma crise institucional, porque o Ministério Público Federal (MPF) emitiu um parecer em que dava razão ao Google. Em seu pedido de vista do julgamento, o órgão afirmou que abrir os dados violaria a intimidade de quem tivesse passado no horário e local alvos dos pedidos do MP-RJ.

Agora, o STJ concorda em parte com o Google —não no mérito, mas nas repercussões que o caso pode ter.

Para o relator do caso no tribunal, ministro Rogério Schietti Cruz, o assunto vai muito além da investigação a respeito de Marielle Franco, pois há um "parente confronto entre o direito à privacidade dos indivíduos e o interesse público na atividade de persecução penal e de segurança pública".

Por isso, Cruz sugeriu que a 3ª Turma, que reúne os dez ministros da área penal do tribunal, julgue em agosto qual é a extensão das ordens judiciais de quebra de sigilo na internet.

[A definição destas diretrizes] ganha especial importância diante do desenvolvimento atual das tecnologias e do aumento de práticas delituosas que dependem, cada vez mais, das informações coletadas pelos diversos tipos de aplicativos ou de redes sociais, as quais têm sido cada vez mais exploradas pelos meios investigativos no âmbito do processo penal
Rogerio Schietti Cruz, ministro do STJ

Carlos Affonso Souza pondera que a possibilidade trazida pela tecnologia não autoriza seu uso indiscriminado pelas autoridades.

Se por um lado parece muito proveitoso para as autoridades investigativas poder ter acesso a um número expandido de dados, impondo apenas delimitadores abrangentes como localização e data, por outro isso significa que serão relevados um universo grande de dados de pessoas que nenhuma relação guardam com o caso em si

O diretor do ITS usou uma metáfora para exemplificar. "De certa forma, estamos perguntando se as autoridades devem pescar com vara e anzol, buscando pegar o peixe desejado, ou se é permitido fazer pesca com rede de arrasto, trazendo à luz tudo o que estiver ao seu alcance."