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Como um estudo sobre cloroquina chacoalhou o mundo e caiu em descrédito

Foto do medicamento hidroxicloroquina, que está sendo usado no combate à covid-19 - CADU ROLIM/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Foto do medicamento hidroxicloroquina, que está sendo usado no combate à covid-19 Imagem: CADU ROLIM/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Helton Simões Gomes

De Tilt, em São Paulo

06/06/2020 16h30Atualizada em 07/06/2020 09h47

Em 20 dias, um estudo sacudiu duas vezes a comunidade científica. Publicado na renomada revista científica The Lancet, a pesquisa condenava o uso de hidroxicloroquina e cloroquina para tratar a covid-19. Mas nesta semana, o mesmo estudo foi revisto por alguns de seus autores, que publicamente assumiram que não poderiam sustentar suas conclusões.

Quando saiu, em 22 de maio, o estudo dizia que pacientes com o novo coronavírus que foram tratados com esses medicamentos apresentavam maior risco de ter complicações cardíacas, e até de morrer, do que as pessoas que recebiam outros remédios.

O choque foi tanto que pesquisas em todo o mundo envolvendo hidroxicloroquina ou cloroquina —incluindo algumas da OMS (Organização Mundial de Saúde)— foram paralisadas. Mas, alguns dos autores do estudo da "Lancet" admitiram que não podem dizer se os dados usados são confiáveis e pediram desculpas.

Assim que a pesquisa foi ao ar, um grupo de quase 150 médicos manifestaram preocupação em uma carta aberta à Lancet. Em resumo, eles questionaram como o artigo chegou às conclusões expostas e pediram que os comentários de revisão dos pares, feitos pela revista antes da publicação, fossem tornados públicos. Eles reclamavam, entre outros, dos seguintes aspectos:

  • O conjunto de dados trazia um número de pacientes que, para alguns países, era superior aos dados oficiais de doentes com covid-19
  • Os autores não compartilharam informações quais hospitais ou países que forneceram dados dos pacientes.
  • A construção rápida do extenso banco de dados usado no estudo gerou dúvidas entre a comunidade científica

O estudo é do tipo observacional. Ou seja, em vez de realizar ensaios clínicos tradicionais, recorre a dados do mundo real. Para isto, usou as informações de 96 mil pacientes hospitalizados com coronavírus. Elas foram analisadas pelos quatro autores:

  • Mandeep Mehra, professor da Escola de Medicina de Harvard
  • Frank Ruschitzka, professor da Universidade de Zurique
  • Amit N. Patel, professor da Universidade de Utah
  • Sapan Desai, fundador da Surgisphere

Quer dizer, acreditava-se que estas informações tinham sido analisadas pelos autores. O que se descobriu foi outra coisa. Já se sabia que as informações usadas pertenciam ao banco da Surgisphere, uma consultoria de inteligência para a área de saúde fundada por Sapan Desai, um dos autores. O que não se sabia é que os outros envolvidos no estudo estavam completamente no escuro quanto a quais dados eram usados.

Essa situação começou a ser revelada ainda na semana passada. A reclamação da comunidade pareceu ter surtido algum efeito, e a revista publicou uma errata.

Acontece que um dos hospitais, cujos dados de pacientes abasteceram o levantamento, foi incluído na região errada. Isso, no entanto, não prejudicou as conclusões da pesquisa, afirmou a Lancet. Mas todo o ceticismo colocou uma pulga atrás da orelha dos autores.

Eles pediram os dados a Desai, que autorizou sua utilização. Na hora que os revisores foram acessar a base da Surgisphere, a surpresa. A empresa não autorizou, segundo informaram Mandeep Mehra, Frank Ruschitzka e Amit N. Patel em nota publicada pela Lancet.

Nossos revisores independentes nos informaram que a Surgisphere não transferiu toda a base, os contratos de clientes e todo o relatório auditado ISO para os servidores deles, porque essas transferências iriam violar os acordos de confidencialidade mantidos com os clientes
Mandeep Mehra, Frank Ruschitzka e Amit N. Patel

A Surgisphere informa possuir petabytes de dados de mais de 240 milhões de pacientes não-identificados, selecionados de cerca de 1.200 hospitais e outras instituições médicas em 45 países.

O problema, afirmou Desai ao jornal "Wall Street Journal", é que os 671 hospitais usados no estudo não poderiam ser identificados devido aos tais acordos de privacidade.

Não satisfeito com a justificativa para a falta de transparência, o trio pediu que o artigo fosse recolhido:

Com base nesse desdobramento, nós não podemos mais atestar a veracidade das fontes de dados primárias. Devido a esse infeliz desfecho, os autores pedem que o artigo seja recolhido

A essa altura, o estrago já estava feito. Afinal, após sua publicação, vários ensaios clínicos foram suspensos. A OMS foi uma das organizações a interromper seus testes com hidroxicloroquina. Após a retratação sair, informou estar pronta para retomar os trabalhos.

Curiosamente, os quatro foram os autores de outro artigo, publicado no Jornal de Medicina da Nova Inglaterra (NEJM, na sigla em inglês) sobre o impacto de drogas para pressão cardíaca em pacientes internados com covid-19. Este estudo também sofreu uma retratação. Neste caso, no entanto, a nota foi assinada pelo quarteto.

A ausência de Desai no comunicado divulgado pela Lancet chamou atenção por sinalizar um racha no grupo. Tanto é que o mais proeminente dos autores, Mandeep Mehra, pediu desculpas publicamente após toda a lambança.

Eu não fiz o suficiente para garantir que a fonte de dados fosse apropriada para esse uso. Por isso e por todas as interrupções --direta e indiretamente--, sinto muito
Mandeep Mehra, professor da Escola de Medicina de Harvard