Dá para pegar a China? Brasil constrói plano para inteligência artificial
Sem tempo, irmão
- Brasil começa as discussões de sua Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial
- Tilt conversou com a professora que elaborou os estudos que ajudaram o MCTIC
- Ela analisou os 28 países que já criaram um plano nacional para aproveitar a tecnologia
- Eles até têm políticas de curto (fazer investimento) e médio prazo (apostar em educação)
- Mas não possuem diretrizes de longo prazo e planos mais duradouros
Traçar um plano para fazer as máquinas trabalharem a serviço da nação, e não o contrário, é algo que quase três dezenas de países já fizeram. Mas ainda que estipulem políticas públicas para impulsionar o desenvolvimento de inteligência artificial (IA) em seus territórios, nenhum deles foi ousado o suficiente para criar diretrizes para um horizonte mais distante.
"Ninguém se arrisca a colocar um plano de longo prazo [para IA]", diz a especialista Rosa Maria Vicari, que já pesquisa o setor há 30 anos.
A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é a responsável por estabelecer as bases do trabalho no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), que iniciará ainda este mês o debate para dar origem a uma Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial.
Após analisar as diretrizes de 29 países que já construíram uma estratégia nacional, Vicari descarta a ideia de que o Brasil esteja atrasado. O primeiro plano foi divulgado em 2018 e o último, da Holanda, há poucos dias.
A pesquisadora atuou como consultora do projeto por meio de uma parceria entre a pasta e a Unesco. Ela levantou experiências internacionais com inteligência artificial em diversas áreas, como educação, trabalho e segurança pública. Também traçou um panorama mundial das leis sobre o tema e ações para difundir e tornar o desenvolvimento de serviços autônomos mais sustentável. Tudo isso serviu de base para a consulta pública que entra no ar nesta quinta-feira (12).
Tilt - A Sra. já trabalha com IA há três décadas. Como a compreensão sobre o assunto mudou durante esse tempo?
Rosa Maria Vicari - A IA foi evoluindo, foi deixando de ser mais estado da arte e pesquisa teórica para se transformar mais em produto, engenharia de software. Ela começou com aplicações pequenas, que foram entrando nos smartphones, surgindo aqui e ali e foram se misturando com sensores e com big data.
A IA atual já não é IA que eu estudei. Ela passou a ter modelos mais confiáveis, porque é usada mais estatística e matemática do que modelos simbólicos, que são mais lentos e faz comparações como maior, menor ou igual, mas não trata da informação exata. Ela evita a incerteza e procura lidar com a explicabilidade (tentativa de explicar como tudo funciona).
A primeira grande mudança foram as redes neurais que puderam ser implementadas com o aumento do poder computacional. Elas produzem resultados mais confiáveis e de forma mais rápida. Hoje em dia, a complexidade dos algoritmos aumentou tanto que há quem defenda menor uso de dados. Essa é uma das três linhas em pesquisa de IA.
É a IA para a IA, que não só aprende com poucos dados como também foca em explicar como tudo funciona. Uma das grandes aplicações disso é o processamento de linguagem natural. A outra linha é uma IA baseada no humano, que procura detectar um viés na aprendizagem e usa algoritmos que trabalham com julgamentos.
Há nisso algo preocupante e que eu considero temeroso: algumas ferramentas não estavam sendo usadas só para prever o futuro em função do passado, como antecipar o comportamento de um aluno em disciplinas futuras com base no que ele já fez. O que está se buscando é moldar o futuro. Começam a oferecer coisas com marketing baseado nesse modelo do passado e isso molda o que aquela pessoa pode vir a adquirir ou não. Ao oferecer coisas só dentro de padrão, não se abre o leque para a pessoa optar por outras coisas.
Uma terceira linha é de pesquisadores que defendem que as plataformas para desenvolvimento de inteligência artificial sejam abertas para que haja a reprodutibilidade dos algoritmos. Assim, um componente criado aqui no Brasil poderá ser conectado a um programa feito nos EUA ou na China.
Tilt - A Sra. acredita que deve ser criada uma legislação própria para a inteligência artificial no Brasil?
Rosa Maria Vicari - Não sei se deve haver uma legislação para IA, apesar de defender uma legislação sobre privacidade e sobre internet, como há no Brasil, mas acho que é necessário para que sejam criados padrões para evitar que as máquinas aprendam com vieses e que tentem moldar o comportamento das pessoas.
Eu compartilho da ideia de ter padrões para IA, que servem para meio acadêmico e indústria. Os padrões, assim como software livre, ajudam o desenvolvimento mais rápido e mais forte na IA. se você tem padrões, consegue fazer interoperabilidade entre sistemas e consegue evitar resultados não tão adequados ou muito fora do que é esperado.
Tilt - Quais vantagens a inteligência artificial pode trazer para um país que se destaque?
Rosa Maria Vicari - A principal vantagem é preparar as pessoas para essa nova realidade. De um jeito ou de outro, elas vão se deparar com uma IA, como usuárias ou desenvolvedores. Elas têm que conhecer e saber que essa tecnologia vem vindo para revolucionar não só o mercado de trabalho mas também a educação.
O país já está usando várias aplicações sem que as pessoas estejam se dando conta. Mas isso depende da opção de cada país. A Índia optou por IA para bem-estar social, assim como a União Europeia. Há país que optou por aplicações bélicas, outros para desburocratizar serviços públicos. O Quênia optou para seu sistema monetário.
Tilt - O que o seu trabalho traz?
Rosa Maria Vicari - É a consulta que vai definir para que área o Brasil vai andar. Certamente, uma empresa vai querer atrair para seu mercado, seu produto, mas enquanto, no governo, a política vai ser resultado da consulta pública.
Meu trabalho vai trazer três eixos: o que está sendo feito internacionalmente; o que priorizaram os países estudados (a Austrália está priorizando ética, os da Ásia estão priorizando IA na indústria e na saúde); e o que há no Brasil.
Dependendo da política do governo, há iniciativas de curto, médio e de longo prazo. Apesar de que isso, numa área de tecnologia que evolui muito, é difícil de estabelecer. É possível estabelecer metas, como atrair talentos, formar mais profissionais, fortalecer centros nessa área. Isso é uma política mais duradoura.
Tilt - Pode dar exemplos?
Rosa Maria Vicari - Há países que optaram a curto prazo em investir dinheiro em universidades, centros de pesquisa e empresas para desenvolver produtos e pesquisa em IA. Até compraram patentes. É o caso da China.
Outros optaram por fortalecer algumas empresas, caso de Israel, que fortaleceu várias, mas não grandes. É difícil optar por uma política em detrimento de outras. Imagine a situação: o Google usa grande quantidade de dados, e o governo americano resolve cortar o monopólio e dividi-la em várias empresas menores; mas, se fizer isso, os EUA perdem para a concorrência, porque virão empresas chinesas com muitos dados.
A médio prazo, a ideia é reestruturar a educação e a relação de trabalho. Há países que propõem taxar a tecnologia para levantar recurso para requalificar pessoas. Mas a gente sabe que muitos empregos serão criados e, para isso, terá que investir em pessoas para essas profissões, tipo ciência de dados e para aprendizado de máquina ("machine learning"). Isso é algo recente, que tem sido feito de um ano para cá. Um país que vem buscando soluções é Portugal, mas a nível de laboratório. Selecionam escolas e tentam uma metodologia própria. Israel é outro. A Estônia também, mas mais voltada para a indústria da internet.
A China é a que mais investe. O segundo lugar deve ser ocupado pela Arábia Saudita, que não revela no que aposta, mas deve ser petróleo. Aí tem EUA e Canadá também investindo fortemente.
A longo prazo, é difícil dizer para que lado a tecnologia vai, porque ela pode surpreender do dia para noite. Por causa disso, ninguém se arrisca a colocar um plano de longo prazo.
Tilt - O Brasil está atrás em relação a esses países?
Rosa Maria Vicari - Existe um mapa feito por consultorias internacionais em que pegam os parâmetros de políticas de cada país: quando publicou, quando investiu, qual a capacidade das pessoas, quais produtos importam. A partir daí, classificam esses países. Como o Brasil não tem sua política traçada, é difícil dizer em que patamar está. O que dá para fazer é um panorama.
O Brasil tem patentes na área, graças à Lei de Informática, mas elas não estão registradas no INPI, e, sim, nos EUA. Por isso, não dá para dizer se o Brasil vai ser bem ou mal.
Em artigos científicos, o Brasil acompanha o estado da arte em pesquisa de inteligência artificial, embora faça muito menos. A China é o primeiro país em número de artigos publicados, seguida dos EUA, em segundo, e da Índia, em terceiro. O Brasil aparece em décimo quinto lugar. Se você olhar a cooperação internacional, quando os pesquisadores são de mais de um país, aí os EUA estão em primeiro, a China, em segundo, o Reino Unido, em terceiro, e o Brasil, em décimo oitavo.
Há muitos laboratórios públicos e privados que pesquisam todas as áreas de IA. Se eu tirar aprendizado de máquina, deep learning (aprendizado profundo) e blockchain, a representação das outras áreas é pequena. Eles estão concentrados em São Paulo.
Há 64 empresas que exportam IA. Há várias startups que produzem algo que usa IA, às vezes é uma intersecção com realidade virtual ou educação, mas o predomínio no Brasil é aprendizado de máquina e big data.
Tilt - O que uma estratégia nacional pode fazer para reverter esse quadro?
Rosa Maria Vicari - A estratégia pode servir de orientação a ser seguida, mas toda orientação tem uma linha. Nesse caso, é uma orientação de uma professora universitária. Se fosse uma consultoria, talvez seja outra. Contatei neurocientista, como o neurocirurgião Carlos Brusius, pesquisadores da área, estudantes de doutorado.
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