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Carlos Affonso Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que Discord, cheio de conteúdo abusivo, não é alvo do PL das Fake News?

Discord foi criticado por não conseguir lidar adequadamente com o conteúdo de ódio e assédio em sua plataforma - GettyImages
Discord foi criticado por não conseguir lidar adequadamente com o conteúdo de ódio e assédio em sua plataforma Imagem: GettyImages

04/07/2023 04h00

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O programa Fantástico, da TV Globo, vem produzindo matérias de embrulhar o estômago sobre conteúdos ilícitos que rodam na rede social Discord. São casos de violência sexual, maus-tratos a animais e tortura. O recado está claro: esse conteúdo não deveria estar no ar e a plataforma parece estar fazendo pouco para combatê-lo.

Nas redes sociais, usuários passaram a usar trechos das reportagens como mote para pedir a aprovação do PL nº 2630/20, conhecido como "PL das Fake News".

Nascido como um projeto de lei para combater a desinformação, o texto hoje trata de uma regulação mais ampla de plataformas digitais como redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas e buscadores.

Ele traz atualizações importantes nas regras sobre internet no Brasil, mas ainda contém armadilhas que precisam ser desarmadas (como conferir imunidade parlamentar para os políticos nas redes sociais).

Acontece que existe um furo nos pedidos pela aprovação do PL nº 2630 com base em toda a escatologia que corre no Discord: o projeto simplesmente não atinge essa plataforma.

Vale entender um pouco mais sobre essa rede e os motivos que tiram a sua operação da alça de mira do PL das Fake News.

De onde veio o Discord?

O Discord é um aplicativo de comunicação em tempo real que foi concebido originalmente para o público gamer, embora tenha rapidamente se tornado uma ferramenta de comunicação para comunidades online sobre os mais variados temas.

A empresa que comanda o aplicativo, criado em 2015 por Jason Citron e Stanislav Vishnevskiy, tem sede na Califórnia.

Citron, um entusiasta dos videogames, havia identificado a necessidade de uma plataforma de comunicação que pudesse facilitar interações em tempo real entre os jogadores. Isso o levou a desenvolver o Discord, um aplicativo que combina texto, voz e capacidades de videochamada em uma única interface.

Características do Discord

O Discord se destacou por sua estrutura de servidores privados, que permite aos usuários criar e gerenciar suas próprias comunidades.

Cada servidor pode ter vários canais de texto e voz, o que proporciona flexibilidade para organizar discussões e eventos. Os usuários podem ingressar em servidores públicos ou por convite e, além disso, enviar mensagens diretas para outros usuários.

O Discord tem uma variedade de recursos de personalização, como a capacidade de configurar bots, criar emojis personalizados e ajustar as configurações de notificação em um nível muito granular.

Os usuários também podem compartilhar tela, o que é especialmente útil para os jogadores que desejam transmitir uma gameplay em tempo real.

Controvérsias e moderação de conteúdo

Apesar de seu crescimento e popularidade, o Discord também teve sua cota de controvérsias.

O aplicativo foi criticado por não conseguir lidar adequadamente com o conteúdo de ódio e assédio em sua plataforma, levantando questões sobre a eficácia de suas políticas e ferramentas de moderação.

A facilidade em criar servidores privados e a falta de supervisão adequada permitiram que esses grupos extremistas, e organizações voltadas para fins ilícitos, adotassem a plataformas como um veículo para os seus conteúdos.

A natureza das conversas em tempo real no aplicativo também contribuiu para que o Discord se tornasse um terreno fértil para a disseminação de teorias da conspiração e desinformação.

Em 2017, pessoas associadas à organização do movimento "Unite the Right", em Charlottesville, nos Estados Unidos, que resultou em violência e morte, usaram a rede para mobilizar apoiadores. A plataforma procurou excluir as comunidades e as contas associadas ao evento depois do ocorrido.

Em abril de 2023, documentos sigilosos do governo americano foram vazados em um servidor particular conectado à rede.

A fronteira entre ser uma plataforma que reúne interessados por games de guerra e a transformação em um meio para a publicação de documentos de segurança nacional havia sido cruzada. O presidente dos EUA, Joe Biden, se disse preocupado com a situação.

Fora do PL das Fake News

No Brasil, o Discord é uma rede social popular, mas ainda não atingiu a marca de 10 milhões de usuários mensais.

Essa situação é relevante no contexto do Projeto de Lei nº 2630, em tramitação no Congresso Nacional, uma vez que a lei proposta só se aplicaria a plataformas que atinjam esse número de usuários no país.

Número recentes colocam o total estimado de usuários mensais do Discord no Brasil na casa dos 3 milhões. Sendo assim, o uso das atrocidades cometidas na plataforma para impulsionar a aprovação do projeto não é correta. Ela só se justifica como argumento de pressão política ou como sugestão no sentido de que o limite de 10 milhões de usuários mensais seja reduzido.

Aqui se esbarra com outro problema, já que ao descer o limite de usuários o projeto, que impõe obrigações significativas às plataformas, passaria a alcançar aplicativos de sucesso, porém muito menores do que as big techs que se pretende atingir com o texto.

A trajetória do Discord é uma ilustração dos desafios inerentes à construção e manutenção de uma plataforma digital exitosa.

A sua capacidade de permitir a comunicação direta entre os usuários é o que o torna valioso para muitos, mas também é uma fonte de preocupações com a divulgação de conteúdos ilícitos.

O Discord acabou ficando no meio de disputas entre setores empresariais (com as empresas de mídia de um lado e as de tecnologia de outro), e entre governo e oposição no Congresso Nacional, que levou até agora à inexistência de consenso para a votação do projeto.

A rede Discord vive assim um momento paradoxal: ela é o alvo das maiores controvérsias sobre ilícitos na rede, embora esteja fora da alça de mira do projeto de lei que procura coibir a divulgação desses mesmos conteúdos.

O debate regulatório brasileiro não é para iniciantes. Ele é um game jogado no modo hard.