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Opinião

Deixamos que o Estado cuide de nossos corpos, mas não de nossas almas

Um levantamento recente promovido pelo Instituto Ipsos levando em conta 31 países apresentou um resultado surpreendente sobre o que preocupa mais as pessoas quando se trata de saúde. Não é o câncer (40%), muito menos a obesidade (25%) ou a diabetes (18%), mas a saúde mental (44%), cujos dois casos limites são o estresse (30%) e o abuso de drogas (22%).

No Brasil, 52% —ou seja, mais da metade da população— aponta a saúde mental como principal problema quando se trata de bem-estar e perspectiva de vida. E a curva é crescente desde que se iniciou o levantamento em 2018, com índices que pioram em direta relação com a geração.

É claro que esta perspectiva muda conforme a idade do entrevistado, sendo mais aguda entre a geração Z e millennials do que entre os boomers e a geração X, como eu, onde o câncer ainda empata com a saúde mental. Mulheres se preocupam mais com o estresse do que homens, jovens se preocupam mais do que idosos. É uma tendência global.

Estamos no topo do ranking nesta matéria, junto com países como Suécia, Chile e Canada.

O resultado concorda com pesquisas anteriores que mostram o Brasil em primeiro lugar quando se trata de ansiedade e em terceiro quando se fala em depressão, particularmente quando se leva em conta as grandes metrópoles.

Poderíamos levantar fatores como violência, insegurança alimentar, excesso de pressão por desempenho ou mobilidade urbana para explicar o dado, mas isso contraria um pouco o fato de que na mesma pesquisa Ipsos os que menos se preocupam com saúde mental são México, onde a violência é endêmica e muito elevada em muitos lugares, a Índia, onde a mobilidade urbana é caótica, bem como a insegurança alimentar, e o Japão, onde a pressão social por desempenho é crescente.

Lembremos que o dado provavelmente reflete nossa recente passagem desastrosa tanto pela crise sanitária da covid, quanto pelo bolsonarismo.

A pesquisa não esclarece o que se deve entender por saúde mental em cada caso.

Por exemplo, em um país como a Holanda, pacotes definidos de tratamento mais medicação estão claramente colocados, por meio de protocolos, rotinas e consensos. Número de sessões, procedimentos padrão, limites e normas bem postos estão acessíveis para todos e isso torna claro e legível o que a "saúde mental pode fazer por você", o que esperar de uma psicoterapia e como ter acesso a ela. Ainda que isso seja feito por um tempo curto e pré-estabelecido (exceto para casos de alta complexidade).

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Fica implícito que, fora o pacote básico, cada um deve se "normalizar" de forma a encontrar sua adaptação social e moralidade compensatória.

Este caso está longe de ser a regra mundial, mas ele serve para lembrar que a percepção sobre a própria saúde mental, seja lá o que isso significa, faz parte da saúde mental.

A maneira como lemos, interpretamos e compartilhamos nosso sofrimento psíquico altera a natureza mesma deste sofrimento. Ou seja, uma cultura onde falar de seus "problemas" pode significar trazer infortúnios para os outros, como parece ser o caso do Japão, o que a pesquisa nos traz pode ser apenas um reflexo de como pode ser vergonhoso reconhecer preocupações "psicológicas" ou até mesmo interpretar certos sinais e sintomas, como psicológicos, e não, por exemplo, uma fraqueza moral ou um déficit comportamental de autocontrole e disciplina.

Nosso Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP está iniciando uma pesquisa junto com a Universidade de Essex na Inglaterra cujo objetivo é mapear processo de normalopatia (sick normalitty), por meio dos quais o sofrimento psíquico e seus signos são naturalizados quer por meio da medicalização, quer sob forma de moralização.

O Brasil parece ser um caso distintivo para este processo.

Segundo levantamento anterior feito pelo Instituto Cactus, já abordado em outra coluna, o brasileiro apresenta proporcionalmente uma alta procura pelos serviços de psicoterapia individual, majoritariamente subsidiada por recursos privados e um grande consumo de medicação psiquiátrica, predominantemente prescrita por não especialistas em contexto de saúde pública.

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Ao contrário de outros países onde há restrições e filas de espera para ter acesso a uma psicoterapia, o Brasil é um dos países com maior número de terapeutas per capta. Isso se deve a natureza habilitante de nossos cursos de psicologia, mas também a políticas públicas que estimularam a procura por esta profissão e ainda por certas características históricas de nossas formas religiosas e psiquiátricas [1].

Desta maneira os serviços públicos em saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial, são equivocadamente associados com problemas de alta complexidade. Enquanto isso, sintomas como depressão e ansiedade eram associados com questões de classes mais favorecidas, que têm acesso a planos de saúde ou podem pagar por seus próprios tratamentos. Saúde mental, exceto em casos graves, era um caso de "white people problem" ("problema de gente branca").

Esta percepção parece estar se transformando com a chegada das psicoterapias on-line, dos tratamentos de baixo custo e maior acessibilidade, bem como pela incorporação da tarefa e do mercado da "saúde mental" por novas formas religiosas.

Novas metodologias de controle e disciplina da "alma", como coachs, programas de tratamento psicológico por inteligência artificial (chatboots) e aconselhadores digitais "selvagens" se espalharam pelo cenário descobrindo uma espécie de demanda reprimida no mercado do cuidado.

A antiga formação seminarista de sacerdotes e as nossas formas religiosas, híbridas e sincréticas, tornaram-se cada vez mais inclinadas a absorver estratégias e saberes psicológicos. A onda espiritualista, tanto no formato roots quanto new age, deixou de ser percebida como estratégia alternativa e passa a integrar, cada vez mais, um combo combinado com psicoterapia, medicação sob demanda e temperada com alquimia de substância psicotrópicas.

Ou seja, se em outros países temos uma normalização por medicação ou moralização, por aqui nós estamos praticando uma moralização química pela palavra.

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Ondas de técnicas como ABA e Denver para funcionalizar o autismo são vendidas no varejo para pais incautos e executadas por jovens aprendizes de psicologia em comunhão comportamental com medicação. Quando o caso é menos grave, ali vem o "atacadão" do TDH para tratar qualquer coisa que aumente o desempenho e adaptação social ou laboral da pessoa.

O que a pesquisa Ipsos traz é que nosso preconceito economicista de que só os ricos têm tempo e dinheiro para se preocupar com saúde mental, está perdendo força. Isso é reforçado pela percepção crescente e subsidiada por pesquisas na área, que indicam que problemas "sociais", como racismo, assédio moral e sexual, sexismo, LGBTQIA+fobia, bullying escolar, etarismo e desemprego, têm sido percebidos cada vez mais como de alto impacto na saúde mental.

Mas, a ideia de que problemas psíquicos têm correlação direta com formas de vida, não envolve apenas a potencial psicologização, individualização e normalização de conflitos sociais, mas também a sociologização de problemas psíquicos, como se eles fossem apenas epifenômenos de nossa identidade, seja ela econômica, cerebral ou genética.

Adaptação social (como se as psicoterapias não pudessem contribuir para transformar o mundo) e moralidade compensatória (como se medicação ou método de treinamento fossem apenas técnicas de consumo) caminham juntas para externalizar a preocupação com saúde mental em, de fato, encaminhar processos transformativos.

No Brasil, 83% da população entende que as pessoas de baixa renda não conseguem arcar com serviços de saúde mental, o que nos coloca na liderança mundial neste tipo de percepção. Talvez isso resulte tanto da maneira como representamos socialmente "os pobres" quanto da maneira como entendemos "saúde mental".

Como em muitos outros países, nós entendemos que nosso sistema público de saúde mental está saturado em relação à demanda, subfinanciado e distribuído desigualmente. Mas ao contrário de outras culturas, nós não queremos que saúde geral e saúde mental sejam tratados da mesma maneira.

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O Brasil é o segundo país que mais se preocupa com saúde mental no mundo atrás apenas da África do Sul, outro país que enfrenta aguda desigualdade social e racismo.

A América Latina é o subcontinente mais preocupado com saúde mental, mas neste contexto o Brasil apresenta um dado dissonante e fora da curva latino-americana: nós não queremos que o investimento em saúde mental aumente ou se equipare ao da saúde geral.

Ou seja, temos que o diagnóstico é comum, mas a terapêutica é diferencial, quando o assunto é sofrimento psíquico. Como se deixássemos que o Estado cuide de nossos corpos, mas não de nossas almas.

Keinesianos por fora, neoliberais por dentro: o Brasil de fato não é para amadores.

REFERÊNCIA

[1] Dunker, Christian Ingo Lenz (2015) Mal-Estar Sofrimento e Sintoma. São Paulo: Boitempo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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