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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Somos escravos ou senhores de nossas crenças digitais? Ainda não sabemos

Gramática da crença envolve o conteúdo, nossa relação com aquilo no qual acreditamos e ainda a prática na qual a crença se exerce - Windows/ Unsplash
Gramática da crença envolve o conteúdo, nossa relação com aquilo no qual acreditamos e ainda a prática na qual a crença se exerce Imagem: Windows/ Unsplash

24/05/2023 04h00

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Com a penetração crescente da linguagem digital em nossas vidas, nossas crenças tornam-se cada vez fenômenos locais, de agregação de valor circunstancial e ganhos pragmáticos.

Tradicionalmente nossa teoria da crença consiste na preservação e cultivo de sentimentos interiorizados, princípios genéricos ou valores familiares.

A gramática da crença envolve tanto o conteúdo, quanto nossa relação com aquilo no qual acreditamos e ainda a prática na qual a crença se exerce.

A vida digital inaugurou uma nova forma de convivência entre deuses e mortais, entre amigos e inimigos, entre adversários e aliados.

Sem capital definida, nem leis claras, há menos de vinte anos nossos templos digitais parecem estar sempre abertos a visitação. Qualquer um pode abrir sua página, blog ou rede social convidando outros a participar de sua própria religião musical ou filosófica, moral ou política, estética ou culinária.

Muitas das queixas que levantamos contra a vida digital são na verdade um desconforto com o cosmopolitismo que ela trouxe consigo. Ou seja, quando aumentamos muito o nível de diversidade de uma comunidade ou de uma cidade e quando esta diversidade não se faz acompanhar de incremento de práticas de mediação, a tendência é que cresça a intolerância e a agressividade.

Resumindo: quanto mais línguas sendo faladas na cidade mais precisamos de tradutores na praça.

Até aqui, nenhuma das instituições do velho mundo parece estar em condições de fazer a mediação necessária para este cenário de polifonia digital.

Mediação significa aqui tradução da situação real de antagonismo, por equivalentes simbólicos em estrutura de "como se".

É assim que:

  • A competição política torna-se um Fla-Flu;
  • Interações sociais viram um teatro;
  • A competição laboral é lida com retórica da guerra;
  • E a apreciação de imagens e músicas é organizada como uma viagem.

Nem universidades, nem o ordenamento jurídico, nem o sistema de jornalismo e publicidade, muito menos as pseudopolíticas das big techs, nada disso parece ter dado muito certo.

O grande mito da concórdia sempre se apoiou na ideia de uma linguagem universal e nossa teoria intuitiva do conflito, reza que se falarmos a mesma língua vamos finalmente nos entender.

O mito de Babel mostra que cada vez que acreditamos nesta teoria, mais desavenças e intolerâncias nos acontecem.

Talvez isso aconteça porque superestimamos ambiguidades e incompreensões da linguagem para negar a existência de interesses realmente diferentes.

Na mesma linha a tolerância, o falso reconhecimento e o semblante de compreensão com o outro confundem-se perigosamente com indiferença e irrelevância.

É neste cenário que a chegada da inteligência artificial talvez esteja sendo recebida como a solução para nossos déficits agudos de mediação digital.

Se as redes sociais possuem estrutura que combina jogo, teatro, viagem e guerra, a inteligência artificial funcionaria como uma religião universal que acolhe todas as crenças e saberes, abertas à revisão e construção permanente, customizada e adaptada pelo uso do consumidor.

Trocamos assim as autoridades nominais, a quem podem imputar interesses escusas e particulares por uma autoridade anônima, que por ser "todo mundo" tem a autoridade do "ninguém".

Assim como os algoritmos permanecem insondáveis, indecifráveis e transcendentes, a inteligência artificial, assim como a ciência de antigamente, merece toda a nossa tolerância, em nome de que no futuro ela trará as respostas para nossa improdutiva falta de consenso.

No Brasil estas duas correntes de problema de cruzam na PL das Fake News, que tenta regulamentar o uso da linguagem digital, cujos perigos e manipulações se vêem confirmados pela "campanha" das empresas digitais para que o Projeto de Lei não seja aceito.

Não se pode produzir provas melhores contra si mesmo do que estas.

Voltamos a Montesquieu e o problema da limitação do poder pelo poder.

Mas se as redes sociais estão para o problema das crenças assim como a inteligência artificial está para o problema do saber, seria fácil intuir que uma deveria ser usada para limitar e contrapor-se a outra.

Mas sem regulação jurídica e sem distribuição do imenso poder amealhado pelas empresas que monopolizaram as mediações o mais provável é que tenhamos um cenário no qual a intolerância e a dúvida se combinem com a desinteligência artificial concentrada.

A volatilidade de crenças exige coragem para suspender recorrentemente a própria identidade, fôlego para aguentar a descompressão narcísica e disposição para participar de discursos erráticos.

Pascal dizia "ajoelhe e reze, depois de algum tempo a crença virá por si mesma". O problema é que este "algum tempo" tornou-se substância escassa ou ausente em nossas crenças digital. Muitas delas são feitas para existir apenas durante aquela breve bolha temporal de cancelamento, sendo excluída depois sem deixar rastro, memória ou consequência, a não ser para quem foi vítima dela.

Se temos recursos digitais para criar ou desfazer crenças sob encomenda, customizadas para cada ocasião, ainda não inventamos um jeito de sair disso ilesos, sem amassar a carroceria de nossa alma.

Neste cenário há os que sofrem quando percebem, comparativamente, como suas crenças são ameaçadas ou confirmadas pela mera existência de crenças alheias.

Muitos recorrem ao que se chama de crença interpassiva como forma de compensar a incerteza.

Na crença interpassiva mantemos ou exageramos um ritual no qual não acreditamos apenas e tão somente porque supomos que o outro, a quem estamos ligados ou com quem antagonizamos supostamente acredita.

Por exemplo, pais que encenam rituais natalinos apenas e tão somente porque acham benéfico que seus filhos acreditem nisso, mesmo que eles mesmos não acreditem, ou digam isso para si mesmos.

No universo digital isso se apresenta como uma espécie de efeito de radicalização, onde toda conversa acaba superestimando o tamanho do público real que a acompanha.

A tendência a agressivização da conversa aumenta muito quando suprimimos tom, enunciação e até mesmo a identidade do outro, mas também quando ninguém a quem recorrer em caso de deslealdade, mentira ou má-fé na argumentação.

Tudo fica ainda pior quando excluímos a posição do terceiro imparcial, cujo melhor exemplo é representado pelo saber imparcial da ciência.

Convenhamos, ter que lidar ao mesmo tempo com pessoas diferentes e com boots inumanos, com sujeitos que supostamente acreditam no que dizem ou que meramente exageram suas crenças interpassivamente, com a falta e com o excesso de árbitros inspiram a crença numa inteligência superior.

Acreditamos que ela nos ajudará a lidar com a batalha real da vida e com os deuses que estão a assisti-la, com argumentos e falácias, com ideias confundidas com superpessoas que as enunciam, com pós-verdade e polifonia de crenças.

Nos momentos de crise histórica com o sistema de crenças florescem reações céticas.

É o caso daqueles movidos pelo ódio que parecem insensíveis a argumentos e provas, a dados e autoridades. Aqui o problema não é o efeito plateia nem a retórica da conversão, mas a autocertificação e o viés de confirmação.

Grito e ataco o outro para recuperar a certeza perdida nos próprios deuses. Caminho perigoso porque é preciso aumentar cada vez mais a dose da "reza" para obter o mesmo efeito de "milagre".

Aqui estão os consumidores potenciais e os adictos em fake news, que apreciam ouvir o que já sabem apenas para purificar e estabilizar a própria crença. Fazem o sucesso de muitos comentaristas e reportagens que apenas repetem ideias do senso comum, mas que faturam com o efeito de pertencimento e pacificação que isso produz.

Caso oposto é o dos que invejam ou desdenham convicções alheias apenas porque elas aparecem como convicções muito delineadas.

Comportam-se como se estivessem libertos deste estágio primitivo no qual dependemos da força dos deuses e das nossas provas de fé. Sua satisfação está na denúncia dos falsos ídolos e das ilusões alheias, como se só eles percebessem que a vida digital é teatro.

Aqui a crença não se pratica pela defesa ou confirmação de teses, mas pela frase de efeito, ambígua ou surpreendente, como que a dizer: vocês não perceberam ainda que este jogo é um teatro sem consequência.

São aqueles que querem discutir se o homem chegou realmente à Lua ou se a Terra é plana, não só como forma de conquistar atenção e causar polêmica, o que os tornará menos solitários, mas pelo sabor de parasitar crenças alheias, apresentando-se na posição de quem não tem posição.

A suposição aqui é de ao se apresentar como um templo vazio ou refratário aos deuses alheios eles incitam a cobiça por serem conquistados.

Outra gramática da crença digital está ligada ao fato de que por mais que os cliques, comentários ou compartilhamentos tenham uma dimensão narcísica, uma função apaziguadora ou uma relevância baseada em ilusões, eles valem dinheiro e votos.

Articuladores de redes sociais operam com perfis falsos. A guerra real dos grafos de consumo e dos influenciadores digitais envolve a ocupação deste novo tipo de espaço público.

Não é porque ele seja patrocinado e organizado por empresas privadas que seu interesse deixe de ser público.

As fronteiras do novo império romano são múltiplas, internas e externas.

Elas envolvem coisas como internet profunda, big data, blockchains, algoritmos secretos, além de uma série de processos que ninguém sabe muito bem como funcionam, mas que operam sobredeterminando nossas crenças.

É possível que a batalha final aqui se dê entre os que acreditam na autonomia e da autoridade do saber, contra aqueles que se especializam nos fundamentos do poder dentro do universo digital.

Até lá não sabemos muito bem se somos escravos ou senhores de nossas crenças digitais.