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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tudo é sexo? A culpa é dos pais? 10 mitos e verdades sobre a psicanálise

Silêncio do terapeuta e uso dos sonhos do paciente estão entre as questões que geram dúvida quando se trata de psicanálise - Cottonbro/ Pexels
Silêncio do terapeuta e uso dos sonhos do paciente estão entre as questões que geram dúvida quando se trata de psicanálise Imagem: Cottonbro/ Pexels

01/08/2022 04h00

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Veja a seguir 10 mitos, verdades ou semiverdades sobre a psicanálise.

1. Para o psicanalista, tudo é culpa do pai e da mãe

Mito em estrutura de ficção.

Não estamos atrás da culpa, mas da responsabilidade e esta é sempre do próprio sujeito, na medida que seu desejo está envolvido.

Ocorre que nosso desejo é construído como a história de nossa vida, com seus bons e maus encontros, com suas interpretações e recordações, com suas edições e censuras.

Nossos pais são o começo desta história, e por isso passam a representar tudo o que estava no mundo antes de nós chegarmos: a cultura, a sociedade, a língua e a mitologia de nossa família.

Quando uma psicanálise refaz as relações com nossos pais e antepassados não é para livrar-se do que não nos pertence, mas para recuperar uma parte importante do que esquecemos que fomos. Sem isso, a pobreza do passado se fará miséria desejante do futuro.

Quando as coisas não dão muito certo, nossa tendência é ir reclamar com a "gerência". A psicanálise existe para nos curar disso, não para nos fixar nisso.

2. Em psicanálise, tudo tem de ter sempre uma interpretação sexual

Verdade, mas não toda.

Toda interpretação é sexual sim, mas desde que se esclareça o que quer dizer "sexual" e o que vem a ser uma "interpretação" em psicanálise.

Pensemos nesta satisfação que a criança tem quando resolve um problema na escola, neste prazer que experimentamos quando reencontramos alguém querido, quando descobrimos pela primeira vez uma nova sensação em nosso corpo, quando sentimos o olhar ou a admiração do outro.

Pense que tudo o que nos faz "sentido" vem junto com uma pitada que seja de prazer. Aí está o sexual.

O problema não é que a psicanálise introduza o sexual por toda parte, mas que ele já esteja aí, na forma deste "sentido" que faz a vida valer a pena ou tornar-se insuportável.

A interpretação sexual já é dada pelo neurótico. O que a interpretação psicanalítica faz é aliviar este excesso de sentido sexual.

Não precisamos de todo o sentido do mundo para viver. Na verdade, um tanto de falta de sentido (portanto, trégua na interpretação sexual) faz bem.

3. A psicanálise é uma teoria velha e desatualizada

Meio verdade, meio mentira.

Ela é certamente uma das mais antigas formas de psicoterapia ou de cura pela palavra, mais ou menos contemporânea do início da psicologia como disciplina universitária independente. Portanto, sim. Para o contexto ela é antiga.

Contudo, teorias velhas não são necessariamente desatualizadas. A geometria de Euclides, a física de Newton, a teoria darwiniana da evolução, são todas mais velhas que a psicanálise, nem por isso estão desatualizadas no sentido de inúteis. Sofreram adendos, relativizações e modificações, exatamente como aconteceu com a psicanálise de Freud.

Mas ao contrário das teorias anteriormente mencionadas, a psicanálise não é só uma teoria, ela é principalmente um método para tratar sintomas, certas formas de sofrimento e de mal-estar. Neste sentido ela é um desdobramento de práticas de cura pela palavra mais antigas que Freud.

Compará-la com as intervenções bioquímicas é como comparar uma mudança no software com uma transformação no hardware de seu computador. Neste sentido, ela não seria nem atualizada nem desatualizada, mas simplesmente outra coisa.

4. O psicanalista entra na sessão mudo e sai calado

Verdadeiro quando necessário.

As principais mudanças não acontecem quando nós escutamos o outro, mas quando nós nos tornamos capazes de nos escutar (o que facilita bem para escutar o outro, depois disso).

Fazemos como Sancho Pança com Dom Quixote, dizemos a todo momento: "mas escute bem o que o senhor está dizendo". Se você imagina que em menos de uma hora de sessão psicanalítica, toda a massa de experiências, desencontros, incoerências e complicações que compõe qualquer vida vai ser alterada pela palavra mágica do outro, procure um xamã.

A única chance que temos é fazer o sujeito trabalhar "fora" da sessão, e que esta seja um impulso, um grão de areia capaz de fazer a estrutura ranger, estimulando seu posterior trabalho elaborativo.

Acho também que a imagem é falsa. Hoje em dia os analistas falam muito mais nas sessões do que antigamente.

5. O paciente tem de contar seus sonhos para o analista

Verdadeiro, mas não obrigatório.

Quando se começa uma análise, um dos fenômenos mais misteriosos é que pessoas que nunca se lembram de seus sonhos, começam a trazê-los para a sessão. Obviamente isso quer dizer que há alguém que está esperando por eles, e isso muda tudo.

O sonho é de fato uma peça muito útil do tratamento, não porque ele contenha algum conteúdo que não seria acessível de outra forma, mas porque ele coloca o sujeito na "atitude" que convém ao tratamento, ou seja, examinar fatos que pertencem a ele, que são de sua lavra e produção, sem que ao mesmo tempo seu sentido seja imediato e transparente.

Costumo "encomendar" sonhos, em momentos específicos do tratamento. Quase sempre dá certo. Como Berzelius que descobriu a solução para o problema da estrutura química do benzeno através de um sonho.

6. O tratamento psicanalítico é longo demais

Verdade possível.

Os objetivos do tratamento são recolocados muitas vezes ao longo de seu desenvolvimento. Há muitos pontos de parada, assim como há vários reinícios, estabelecidos ou não em contrato.

Há análises curtas, baseadas em sintomas ou situações de vida pontuais e críticas. Há análises longas como uma viagem que se vai levando mais longe na medida do interesse.

Em trajetos mais longos, a remoção de problemas vai cedendo espaço para a aventura da descoberta.

Há gente que vai e volta de vez em quando. Há pessoas que levam três ou quatro encontros para o resto da vida, como algo fundamental.

Há casos que podem ser comparados com aquela antiga piada sobre a filosofia, ou seja, aquilo sem o qual tudo continua tal e qual.

Sempre é central resolver a separação com o analista, modelo de outras separações possíveis.

Há também análises intermináveis, que se tornam parte de uma existência cronicamente precária ou inviável. Por outro lado, há condições, e muitas, na medicina, na qual o tratamento é para a vida toda, porque não seria este o caso para a vida psíquica também?

Esta variação entre meios e fins pode ser usada para esconder imperícia, negligência e imprudência. alienação e dependência, o que qualquer tratamento deveria evitar.

Por outro lado, tudo o que realmente vale a pena na vida demora, custa ou é proibido.

7. A psicanálise não apresenta evidências de eficácia

Comprovadamente falso.

A definição de cura pode mudar ao longo do tratamento, no entanto, se a pergunta é focada na eficácia comparativa com outras abordagens psicoterapêuticas ou com tratamentos medicamentosos, há recentes pesquisas que comprovam a eficiência da psicanálise.

Ainda assim é preciso ressaltar a terrível redução metodológica que se deve fazer para chegar a este tipo de resultado: formas diferentes de psicanálise, tipos de paciente, experiências formativas e profissionais distintas entre analistas, modalidades diversas e irreprodutíveis de sintoma, extensão e regularidade do tratamento, momentos diferenciais de vida, dimensão proporcionalmente incomparável do sofrimento impingido pelos sintomas e, finalmente, o chamado "caráter único do encontro" que se dá entre os envolvidos, muitas vezes comparado ao encontro amoroso.

Uma prova científica e cabal de que a psicanálise cura pode ser encontrada na seguinte meta-análise (um tipo de estudo que equaliza e reúne centenas de outras pesquisas, potencializando seus resultados convergentes).

Mais recentemente as objeções estatísticas e metodológicas destes resultados foram refutadas, comprovando não apenas a consistência das evidências para a psicoterapia psicodinâmica, mas também para a psicoterapia psicanalítica [1].

8. A psicanálise é uma psicoterapia melhor que as outras

Falsidade indecidível e indiscernível.

A maior parte dos estudos comparativos entre modalidades de psicoterapia esbarra na quantidade de fatores a serem comparados, desde a variedade de formas diagnósticas até o fato de que nem todo sofrimento tratado pelas terapias precisa ter um nome claro e discernível em termos de psicopatologia.

Mas também a comparação entre as inúmeras formas de psicoterapia, com pacientes mais ou menos graves, com terapeutas mais ou menos experientes, com clínicos mais ou menos bem formados, com combinações diversas "do que funciona para quem e quando", vem sugerindo que a variedade entre os terapeutas de uma mesma abordagem é consistentemente mais importante do que a diferença entre uma abordagem ou outra.

Moral da história: não se pode afirmar a superioridade de uma abordagem sobre as demais, principalmente quando se consideram as psicoterapias historicamente mais antigas e ramificadas do ponto de vista de sua renovação metodológica.

Assim como não tratamos da doença, mas do doente, talvez o terapeuta, e principalmente a qualidade da relação com ele, importa mais do que o método que ele segue.

9. Há muitas críticas à psicanálise

Positivamente verdadeiro.

De Wittgenstein até Popper, de Sartre até Grünbaum, de Foucault a Deleuze e Guattari, das feministas ao pensamento decolonial, a psicanálise recebe críticas bem ou mal feitas.

Para alguns, ela seria herdeira de práticas confessionais de extração religiosa, como dispositivo de localização da verdade do sujeito em sua interioridade sexual, dependente da falsa hipótese repressiva.

Para outros, ela combina indevidamente explicações literárias com biologia. Para outros, ela forma parte no patriarcalismo e é uma prática de elites para elites.

Outros ainda entendem tratar-se de uma prática que concorre para a psiquiatrização da sociedade, notadamente do controle das famílias e de alguns tipos sociais que lhe seriam normativamente contrários.

Isso tudo costuma ser percebido pelos psicanalistas como uma generalização exterior à sua própria prática, como se ela não fosse interna e intimamente uma prática que estaria às voltas com sua constituição social e consequente circulação de poder.

No fundo é preciso desfazer o mito da unidade da psicanálise, entender que sua diversidade convive com referências comuns, mas que, em quase todos os ramos das práticas humanas convivem versões mais conservadoras e versões mais progressistas, modalidades mais sensíveis ao potencial transformativo da crítica e outras mais resistentes. Se queremos formas de psicanálise menos neurótico-cêntrica, menos androcêntrica, menos totemista-patriarcal, menos judicialista-disciplinar, menos indiferente ao tema do poder na própria situação analítica.

O mais provável é que as críticas destitutivas, que querem eliminar esta prática como nociva e enganadora, assim como os defensores ardorosos da imutabilidade freudiana estejam juntos e unidos no mesmo equívoco.

Diante desta incerteza o melhor caminho é jamais desistir do seu desejo de cura e nunca imaginar que se tem uma ideia do que é um elefante, só porque ele colocou sua pata sobre seu peito ou porque você o viu pastar na savana.

Isso vale também para o paciente que deve sempre estar atento a picaretas, aproveitadores e malformados, que se comportam como elefantes numa loja de cristal.

10. Quando é a hora de procurar uma psicoterapia?

A vida não vem sem sofrimento e miséria. Se isso fosse suficiente para determinar a procura de ajuda seria simples: psicoterapia para todos.

Não penso que seja este o caso.

Há situações como dependências químicas, disposições de personalidade e sintomas específicos para os quais a maior dificuldade é procurar tratamento. Se o sintoma deixasse o sujeito pedir ajuda "meio caminho já teria sido andado".

Nesta linha a psicoterapia só seria possível para aqueles para quem ela já não é mais necessária.

Pedir ajuda é um grande sinal de salubridade psíquica. Indica que você foi capaz de perceber e autodiagnosticar uma forma de sofrimento.

Sugere também que você entende que isto não é apenas uma deficiência moral, uma insuficiência de sua educação ou uma ofensa ao seu sistema de crenças.

O autodiagnóstico é parte do processo de cura.

O clínico tenderá a interpretar este movimento crítico como parte de seu desejo de transformação.

Antigos filósofos já diziam que era difícil suportar a ideia de ser "libertado pelo outro", tanto porque isso indica passividade e fraqueza, quanto porque seria uma liberdade falsa, obtida por meios que não são próprios.

Esta oposição entre resolver-se por si, "aceitando-se como você é", ou pedir ajuda e ficar dependente nas "mãos do outro" deve ser superada.

Como em tudo mais na vida, atravessamos problemas e nos tornamos autônomos com os outros e não sem eles.

Contudo, isso não explica quando um sintoma se torna insuportável a ponto de demandar tratamento.

Os verdadeiros sintomas não se definem pelo código social de condutas desejáveis, mas por duas formas específicas de relação que mantemos com o que fazemos.

Há os sintomas baseados na forma "ter que", definidos pela coercitividade. Exemplo: trabalho, como todo mundo, todo dia, e me queixo e me felicito nele. Isso pode ser um sofrimento "suportável". No entanto, outra pessoa pode sentir que "eu tenho que" ir trabalhar, porque se não for "algo acontecerá", sentirei angústia extrema, serei criticado impiedosamente pelo chefe, e assim por diante.

Há aqui o recobrimento de um "comportamento aceitável" (trabalho) por uma disposição patológica (coerção subjetiva a).

A segunda família de sintomas obedece a gramática do "não posso com". São situações que podem parecer irrelevantes, ou plenamente aceitas socialmente, mas que são vividas com sofrimento adicional. Exemplo: "não posso com baratas, com ratos, com pessoas deste 'tipo', com mulheres desta 'forma', com perdas, com ganhos" e assim por diante.

O diagnóstico que autoriza um tratamento psicoterápico está mais atendo a esta incidência "subjetiva" do "ter que" ou do "não posso com" do que com a norma de vida esperada para alguém ou época.

Ainda que únicos, os sofrimentos são igualmente trágicos e cômicos. Eles são o que as pessoas têm de melhor e de pior. São como obras de arte que se tornam o bem mais precioso e inarredável de alguém, são também sua religião particular, feita de ritos, mitos, orações e devoções.

Quando temos um nome para o mal-estar, uma história para nosso sofrimento, os sintomas revelam-se uma maneira de dizer o que não pode ser dito por outras vias.

Talvez a função do psicoterapeuta seja parecida com a de um carteiro que pega cartas embaralhadas, as cartas de nosso destino, e ajuda a entregar as que podem ser entregues, reenviar as que estão sem destinatário e cuidar daquelas que ainda não foram escritas.

REFERÊNCIA

[1] Woll, Christian Franz Josef , Schönbrodt, Felix D. (2021) A series of meta-analytic tests of the efficacy of long-term psychoanalytic psychotherapy. European Psychologist, Vol 25(1), 2020, 51-72